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O diplomata do campo

O produtor Caio Penido busca unir pecuária e preservação ambiental

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Penido trocou o cinema pela criação de gado, herança de família. “O agro precisa falar com mais transparência”, afirma – Imagem: Rogério Albuquerque e Redes Sociais/Caio Penido
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Nas idas à Fazenda Roncador, no norte de Mato Grosso, o menino observava o vaivém do gado, os peões em comitiva e o horizonte sem obstáculos em meio ao cerrado. Era o oposto da vida em São Paulo, onde a visão era bloqueada pelos prédios. As férias no campo ficaram como lembrança de encontro e contraste, e a Roncador não era uma fazenda qualquer. Criada por Pelerson Penido, foi a maior propriedade do País, com 153 mil hectares, e refletia uma visão da época, a de que o desenvolvimento brasileiro passava por ocupar o interior e torná-lo produtivo. Com o tempo, aquele território deixou de ser apenas cenário de infância. As imagens do campo – a terra vermelha, o som metálico das máquinas, o silêncio das madrugadas – ficaram guardadas como um tipo de memória física, que voltaria anos depois, quando o neto de Pelerson decidiu olhar o Brasil por outro ângulo.

Caio Penido Dalla Vecchia, hoje com 52 anos, herdou parte da fazenda e também um dilema comum a quem produz no ­País: como ampliar a produtividade sem repetir os erros do passado. Crescido entre o concreto e a poeira, aprendeu cedo que o Brasil é feito de contrastes e que o campo e a cidade, a produção e a conservação, estavam mais próximos do que pareciam.

Antes de voltar definitivamente a Mato Grosso, enxergou o mundo pelas lentes do cinema. Em 2002, fundou a Encruzilhada Filmes, dirigiu o longa Um Homem Qualquer e o documentário Brasil Novo – Conflitos do Desenvolvimento, no qual buscava entender a tensão entre crescimento e desmatamento. Quando voltou à Roncador, encontrou um cenário diferente daquele das memórias de infância. A agricultura havia avançado sobre a ­pecuária, impulsionada pela soja. As mudanças mostravam que o campo se transformava rapidamente, nem sempre de forma ordenada. Em suas terras, Penido começou a testar novas práticas de manejo e recuperação de pastagens, nas quais combinava lavoura, pecuária e floresta. A fazenda, antigo símbolo do desbravamento do Centro-Oeste, passou a servir como campo de experimentação para uma produção de menor impacto ambiental. “Não é só desenvolver, nem só conservar”, afirma. “Tem de achar uma forma de produzir com conservação, com sustentabilidade. É o que eu tento dialogar entre os mundos, o setor produtivo e o ambiental.”

A passagem pelo cinema deixou marcas. A experiência deu-lhe expertise para comunicar o que via no campo, um setor em busca de eficiência, mas ainda dividido entre pressões econômicas e ambientais. Com o tempo, o pecuarista percebeu que mudanças isoladas não seriam suficientes. O desafio não estava em transformar uma única fazenda, mas em criar redes capazes de sustentar práticas novas. Em 2014, participou da fundação da Liga do Araguaia, formada por produtores em busca de metas comuns. O grupo começou com iniciativas modestas – regularização de áreas, melhora de pastagens, redução de emissões – e ganhou visibilidade com o projeto Carbono Araguaia, que monitorou 79 mil hectares para compensar parte das emissões das Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016.

“Não é só desenvolver nem só conservar”, afirma o empresário

Outros projetos vieram na sequência. Ainda assim, os resultados encontraram resistência: o debate sobre sustentabilidade na pecuária continua marcado por desconfiança mútua entre produtores e ambientalistas. Por conta disso, Penido começou a destacar-se como mediador. Passou a frequentar reuniões e fóruns que reuniam governos, ONGs e representantes do setor privado, onde o tom das conversas é, em geral, tenso. A habilidade de transitar entre agendas distintas levou-o, mais tarde, ao Instituto Mato-Grossense da Carne (Imac), entidade que reúne produtores, frigoríficos e o governo estadual. No Imac, Penido viu que o setor vivia sob pressão de dois lados. De um, as exigências de rastreabilidade e conformidade ambiental. De outro, as dificuldades dos produtores em atender a essas regras nos prazos estabelecidos. O instituto passou a servir como ponto de encontro entre demandas ambientais e a realidade produtiva.

Ali começou a ganhar forma o “Passaporte Verde”, projeto voltado a criar um sistema de monitoramento socioambiental da cadeia da carne. A ideia era reunir informações sobre origem, regularização e conformidade em uma plataforma integrada, evitando a sobreposição de auditorias e custos adicionais. O programa nasceu de negociações com o Ministério Público Federal, o Tribunal de Justiça e o governo estadual, e está estruturado sobre dois eixos. O primeiro é o Programa de Reinserção e Monitoramento, que permite a produtores bloqueados por irregularidades ambientais voltarem à atividade mediante planos de recuperação. As ações são acompanhadas por satélite e validadas por órgãos públicos. O segundo eixo é mercadológico: substituir as auditorias privadas por um sistema unificado, integrado ao Ministério da Agricultura. A adesão é voluntária, mas está prevista para expandir-se até 2033 e cobrir todo o setor no estado.

A proposta enfrentou resistências. Parte dos pecuaristas via o monitoramento como forma de vigilância, enquanto os ambientalistas temiam a flexibilização de regras ambientais. O debate forçou o amadurecimento do modelo, que passou a apoiar-se em incentivos econômicos e transparência pública para garantir adesão. “A pecuária é emissora de gases de efeito estufa, mas no Brasil o gado é criado a pasto. Aqui a gente tem emissão e sequestro de carbono. É preciso calcular o balanço. O Brasil tem uma pecuária muito mais equilibrada do que aquela dos países do Hemisfério Norte.”

O “Passaporte Verde” consolidou Penido como “embaixador”, visto como um nome capaz de transitar entre produtores e formuladores de política, sem vínculo partidário ou representação formal. Essa posição de intermediação, ao mesmo tempo técnica e política, levou-o a participar de discussões sobre descarbonização, rastreabilidade e comércio exterior. Nos últimos anos, o pecuarista participou de fóruns internacionais sobre clima e produção de alimentos. Em missões técnicas na Europa e nos Estados Unidos, apresentou dados sobre rastreabilidade e uso do solo. Com a COP30, o desafio, segundo ele, é mostrar que o Brasil tem condições de conciliar produção e conservação a partir de suas próprias leis.

O menino que cresceu entre o asfalto e o cerrado hoje busca interligar dois mundos. Talvez este seja o seu papel mais importante: mediar interesses que raramente se cruzam, sem deixar de reconhecer as contradições que os separam. E ainda que negue, por ora, a política partidária, atua com a consciência de que o diálogo é a única forma de avançar. “O agro precisa falar com mais transparência”, defende. •

Publicado na edição n° 1387 de CartaCapital, em 12 de novembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O diplomata do campo’

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