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Floresta insubmissa

A Amazônia resiste há séculos às agressões. Até quando?

Floresta insubmissa
Floresta insubmissa
Imagem: iStockphoto
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O filme Amazonas, o Maior Rio do Mundo é um marco no registro da Amazônia como território de saque e espoliação. No choque entre a região mítica e o país que se inseria na ordem econômica mundial como fornecedor de matérias-primas, no começo do século XX, o filme capta uma rota de colisão de duas histórias que navegam em tempos e ritmos diferentes. Até hoje.

Só há pouco tempo consegui assistir à obra e entender sua importância documental. É o primeiro longa-metragem filmado na região, entre 1918 e 1920, pelo português Silvino Santos. Ele empreendeu uma expedição por Belém, Santarém, Manaus e Itacoatiara até chegar na fronteira com o Peru. Santos foi contratado por empresários da Associação Comercial de Manaus para exibir as muitas oportunidades de negócios na região com a exploração dos recursos naturais excepcionais, em quantidade e qualidade. Era um filme para atrair o capital.

Depois de pronto, foi levado por um suposto parceiro do cineasta para ser vendido na Europa. É quando a história ganha ares de lenda. O encarregado passou a apresentar-se como o diretor da obra e a vendeu para uma distribuidora, em Londres. A última notícia que se tinha sobre a película datava de 1934. O filme passou 90 anos desaparecido até ser localizado por um pesquisador, em 2023, no Arquivo Nacional de Cinema da República Tcheca, em Praga. O longa pode ser visto no YouTube e tem uma cópia na Cinemateca Brasileira, em São Paulo.

O filme de Santos registra a Amazônia como território de extração predatória, embora essa não tenha sido a intenção do diretor. O documentário não tem a menor pretensão de ser uma denúncia. Ao contrário. O diretor imprimiu um caráter publicitário ao trabalho e não escapa da visão estereotipada da Amazônia exuberante, pronta a ser explorada até a última árvore. A pilhagem da natureza salta, no entanto, da tela nas imagens em preto e branco que poderiam ser feitas hoje, em cores, como no caso da exploração de madeira. Toras e mais toras enchem o pátio das madeireiras e são transformadas em tábuas para uso industrial.

A região sempre foi “inimiga” de quem diz defender o progresso

Algumas cenas não poderiam ser repetidas, pois algumas espécies não têm mais a abundância do passado e, felizmente, o Brasil conseguiu construir um sistema de proteção ambiental que permanece de pé, apesar de constantemente atacado. São impressionantes as fileiras de peixes-boi e pirarucus na beira do rio, abatidos e retalhados em postas, prontos para comercialização. A legenda da cena é clara: “Rico saque”. As tartarugas são deixadas ao sol, com o casco virado para baixo até definharem. Borracha, castanha, peles de animais, algodão, tudo é extraído e produzido em larga escala. Santos registra ainda a chegada dos rebanhos. Quase uma premonição do que se vê hoje com as patas do boi a dizimar a floresta. As gentes amazônicas são meramente coadjuvantes. Só aparecem como os indígenas de adornos exóticos ou como trabalhadores braçais, quase animais de carga.

O avanço do século XX acelerou a rota de colisão na direção dos anos de “Brasil Grande”. Era a ditadura com seus delírios faraônicos, como a Rodovia ­Transamazônica. A estrada deveria sair do litoral da Paraíba e rasgar a floresta pelos estados do Pará, Amazonas e Acre, num percurso de 4 mil quilômetros. Ligaria o Atlântico ao Pacífico. Conforme a propaganda ufanista da época, a floresta era o inimigo a ser derrotado. Os anúncios escancaravam o projeto devastador: “Chega de lendas, vamos faturar!” E proclamavam: “A Amazônia já era”, “A investida da civilização na área mais bravia do planeta”, “Rasgamos o inferno verde”, “Vencemos a floresta”.

Nada mais equivocado. A estrada nunca foi concluída. Até hoje, trechos imensos viram lamaçal no inverno amazônico, período das grandes chuvas. No verão, quando chove menos, nuvens de poeira tomam conta da paisagem. Mas o marco da “inauguração” está lá, em Altamira, conforme verifiquei, em viagem recente à região. Uma placa com a data de 9 de outubro de 1970, ao lado do toco de uma árvore decepada, preenchido com cimento. Difícil imaginar algo mais grotesco para ilustrar as ambições fracassadas de “conquista” da região.

Um marco no registro dos saques e espoliações

Mas, sim, na colisão à qual me referi, a Amazônia tornou-se exportadora de commodities. Levantamento recente do MapBiomas mostra que 58% de toda a superfície minerada no País desde 1500 foi aberta entre 2015 e 2024. Dois terços dessa expansão ocorreram na Amazônia. O maior rebanho bovino está no município de São Félix do Xingu, no Pará. São 2,5 milhões de cabeças de gado. Quase 40 bois por habitante.

No cruzamento de desatinos, a usina hidrelétrica de Belo Monte foi inaugurada em 2016. A usina sacrificou a vida no Rio Xingu, que passou a ter um cemitério de árvores “afogadas”.  Áreas, antes submetidas ao ciclo natural de cheia e vazante do rio, tornaram-se permanentemente alagadas e as árvores sucumbiram à água em excesso. Restam troncos e galhos desfolhados como se tivessem sido alvo de um ataque químico ou de um bombardeio. A fartura de peixes de outrora não é a mesma. Indígenas e ribeirinhos foram afetados para sempre em nome de promessas de desenvolvimento que nunca chegam.

O delírio mais recente é o projeto de exploração de petróleo na Bacia da Foz do Amazonas, na faixa conhecida como Margem Equatorial. A ciência comprovou que em torno de 75% das emissões de gases do efeito estufa têm origem na queima de combustíveis fósseis (petróleo, gás e carvão). Abrir uma nova fronteira exploratória de petróleo é pisar no acelerador em direção ao abismo climático.

A Amazônia, seu “rio-mar” e sua floresta são uma dádiva de vida e abundância. Seus “rios voadores” produzem a chuva que possibilita a agricultura em vastas regiões do Brasil e em países como Paraguai e Argentina. A floresta é fator de regulação climática do planeta. Insubmissa, tem suportado agressões seculares. Ferida, tem o chão regado com o sangue de seus mártires. Chico Mendes, Dorothy Stang, Padre Josimo Tavares, Zé Cláudio e Maria do Espírito Santo, Bruno Pereira, Dom Phillips e muitos mais. Mas a Amazônia resiste. Porque resistir faz parte da lei da floresta e do rio. •


*Jornalista e escritora, autora, entre outros, de Cidade Rachada.

Publicado na edição n° 1394 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Floresta insubmissa’

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