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Desmatamento zero?

A promessa de Lula só pode ser cumprida com o resgate do Ibama e do ICMBio, arrasados pelo governo Bolsonaro

Desmatamento zero?
Desmatamento zero?
Enquanto o Ibama não tem recursos para quitar despesas básicas, como água, luz e telefone, as GLOs do general Hamilton Mourão receberam quase meio bilhão de reais e apresentaram um resultado pífio - Imagem: Felipe Werneck/Ibama e Bruno Batista/VPR
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Vítima da política predatória de Jair Bolsonaro, a Amazônia sofreu nos últimos quatro anos um aumento de 60% em seu desmatamento e o crescimento exponencial da grilagem de terras públicas e das mais diversas modalidades de ilícitos ambientais, com destaque para a explosão do garimpo ilegal em Terras Indígenas e Unidades de Conservação. Reverter a situação de desmando em nosso maior bioma é tarefa primordial para o próximo governo, aguardada com expectativa por todo o planeta, desde que o presidente eleito Lula, durante sua participação na Conferência do Clima da ONU, em novembro, prometeu zerar o desmatamento ilegal no Brasil até 2030. Qualquer ação de retomada da governança na Amazônia passa, porém, pelo resgate dos dois principais órgãos federais de proteção ambiental, o Ibama e o ICMBio, que tiveram suas direções aparelhadas por policiais militares e integrantes das Forças Armadas e sua capacidade de gestão dizimada pelos sucessivos cortes orçamentários, sem reposição de pessoal.

“Um dos grandes desafios que o governo Lula enfrentará na área ambiental será o restabelecimento dos papéis do ­Ibama e do ICMBio, a reestruturação de seus quadros de funcionários e a recomposição de seu orçamento”, afirma o deputado federal Nilto Tatto, do PT, integrante do Grupo de Trabalho de Meio Ambiente na equipe de transição. O relatório produzido pelo comitê, e entregue esta semana a ­Lula e ao vice-presidente eleito, Geraldo ­Alckmin, confirma “o desmonte generalizado na área ambiental” e lista as emergências do novo governo, comenta o ambientalista Pedro Ivo Batista, relator do documento. “O primeiro é manter os órgãos ambientais funcionando, reorganizar suas direções e valorizar os servidores de carreira. Precisamos rever todas as perseguições e demissões injustas ocorridas.” Além disso, acrescenta o dirigente da Rede e do Fórum de ONGs pelo Meio Ambiente, algumas revogações de atos do governo Bolsonaro foram sugeridas: “Nos primeiros cem dias de governo, serão revistos todos os contratos, de forma a garantir o funcionamento dos órgãos e suas funções constitucionais, particularmente no que diz respeito à reconstrução da parte operacional da fiscalização”.

Recompor a capacidade de fiscalização é a prioridade: “Os fiscais do Ibama já foram perto de 1,8 mil, mas hoje temos somente cerca de 700 atuando em todo o Brasil, o que é muito pouco. Para recuperar o que foi perdido, é preciso voltar ao número anterior”, diz Suely Araújo, especialista sênior em Políticas Públicas do Observatório do Clima, que produziu o estudo a revelar o tamanho do desmatamento na Amazônia no governo Bolsonaro. Ela acrescenta, porém, que não basta reerguer a estrutura de fiscalização: “É preciso ter servidores que vão dar a devida continuidade aos processos de instrução e julgamento das multas e outras sanções aplicadas. Não adianta lavrar a multa e depois não conseguir julgá-la. Há necessidade imediata de reposição de servidores para os setores de licenciamento e de qualidade ambiental. No caso do ­ICMBio, também para a gestão das áreas protegidas”.

O garimpo ilegal avançou sobre Terras Indígenas e Unidades de Conservação, patrocinado pelo crime organizado e diante da omissão federal – Imagem: Bruno Kelly/Amazônia Real

Para operacionalizar as operações do futuro governo, afirmam os especialistas, será necessário resgatar a relação entre os órgãos ambientais e o Exército, deteriorada ao longo do governo Bolsonaro. O maior símbolo desse estranhamento foram as edições das ações de Garantia da Lei e da Ordem coordenadas pelo vice-presidente Hamilton Mourão e que gastaram quase meio bilhão de reais. Elas não serão retomadas pelo próximo governo. “Será necessária uma nova modalidade de comando e de controle, de fiscalização, que promova vários espaços no âmbito do governo federal, como o Ministério do Meio Ambiente, o Ministério da Justiça e as Forças Armadas, de forma articulada com os governos estaduais e as prefeituras”, diz Tatto. A meta é unir novamente todos esses atores, que antes atuavam em conjunto no Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal, a ser restabelecido. “O novo governo montará e fortalecerá um mecanismo de fiscalização permanente.”

Para o advogado e ambientalista Rogério Rocco, servidor concursado do ­ICMBio e ex-superintendente do Ibama no Rio de Janeiro durante a gestão Lula, é importante a criação de um comando central que envolva todo o governo, mas com cada um cumprindo o seu papel. “O Exército é fundamental no apoio às ações de fiscalização e deverá manter essa atuação. O mesmo vale para a Polícia Federal, que tem um trabalho de investigação fundamental. E o Ibama e o ­ICMBio, dentro de suas competências, voltarão a exercer suas funções de órgãos executores da política nacional de meio ambiente”, diz. Rocco ressalta ainda a urgência de desaparelhar os órgãos ocupados pelo bolsonarismo: “O ICMBio foi tomado por PMs de São Paulo, o Ibama por pessoas estranhas à sua missão ambiental. Nos dois órgãos foram adotadas inúmeras atitudes contrárias aos seus respectivos objetivos. Nós, servidores de carreira, vimos no comando das instituições pessoas incompetentes ou comprometidas com interesses alheios. Em muitos casos, houve uma combinação das duas coisas”.

Aparelhados por militares, os órgãos de fiscalização padecem com os cortes no orçamento

A recomposição dos orçamentos do Ibama e do ICMBio passa inicialmente pela aprovação da PEC da Transição e dos recursos dela provenientes para reverter o total abandono. A situação nos dois órgãos é calamitosa. No apagar das luzes, o atual governo anunciou novos cortes no Ministério do Meio Ambiente que deixaram o Ibama e o ICMBio na lona. “Não há como arcar até o fim do ano com despesas básicas, como água, luz e segurança. Nem como financiar os deslocamentos dos fiscais”, anunciou o ainda presidente do Ibama, Eduardo Bim, advogado próximo ao ex-ministro Ricardo Salles, célebre ao cunhar a expressão “passar a boiada” nas normas ambientais do País. “É fundamental que os recursos provenientes do Fundo Amazônia e o Fundo Clima estejam fora do teto de gastos. O MMA e seus órgãos devem ter seus recursos recompostos e ampliados para que o governo cumpra suas diretrizes programáticas e as metas assumidas mundialmente na COP do Clima. O empenho do novo governo nessa área será exemplar”, diz Pedro Ivo.

Rocco lembra que uma das propostas discutidas no GT é a possibilidade de acionar o Fundo Amazônia e outras fontes de recursos oriundos de acordos de compensação ambiental ou dos variados acordos de cooperação institucional existentes. O advogado diz ser fundamental restabelecer o arranjo institucional promovido nos governos anteriores de Lula: “O Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal, formado por 14 ministérios e comandado pela Casa Civil, mirou não somente o combate à devastação, mas também investimentos em infraestrutura e oportunidades para geração de emprego e renda, com a promoção de novas cadeias econômicas. Foi isso que nos levou aos grandes índices de redução do desmatamento”. Ignorado por Salles e Bolsonaro e com 3 bilhões de reais em recursos paralisados, o Fundo Amazônia promete ser a mola propulsora da reconstrução ambiental do País. Logo após a confirmação da vitória de Lula, o principal doador, a Noruega, manifestou o desejo de retomar os aportes. Sócio menor, o governo da Alemanha seguirá o mesmo caminho. A expectativa agora passa a ser a adesão de países como os EUA.

As GLOs de Mourão consumiram quase meio bilhão de reais e tiveram resultados pífios – Imagem: Bruno Batista/VPR

Além de fortalecer a fiscalização e o enfrentamento ao desmatamento e às queimadas, sobretudo nas Unidades de Conservação, os recursos oriundos tanto da PEC da Transição quanto do Fundo Amazônia poderão servir também, de acordo com as sugestões elencadas pelo GT de Meio Ambiente, para reestruturar o orçamento de programas como o Bolsa Verde: “Esta é outra prioridade. É preciso ir além das ações de comando e controle e de combate à criminalidade e buscar alternativas econômicas para quem vive na Amazônia”, diz Tatto. A meta de Lula é voltar a empoderar os povos da floresta: “As populações originárias e as comunidades tradicionais que cuidam das florestas serão respeitadas e valorizadas. O governo construirá uma economia florestal forte, inclusiva e que volte a gerar emprego e renda sem destruição”, emenda Pedro Ivo.

Outra urgência que será atendida pelo futuro governo é a realização de concursos públicos para o Ibama e o ICMBio. Para Suely Araújo, é urgente a reestruturação dos recursos humanos. “A maior demanda é por pessoal de nível superior para os cargos de analista ambiental ou analista administrativo”, diz. Ela aponta que, sem precisar criar novo cargo e apenas somando as vagas não preenchidas na administração direta do MMA e seus dois principais órgãos executores, se faz a reposição imediata de 2.103 vagas: “É um número necessário, pois, se o Brasil quer mesmo se tornar uma potência ambiental, esses órgãos precisam funcionar. Não adianta captar doações internacionais se os órgãos não tiverem condições de funcionamento. É preciso realizar concursos que envolvam todo o sistema dos órgãos federais de meio ambiente”.

Rocco observa que, mesmo antes da realização de novos concursos, é possível convocar imediatamente os aprovados para as vagas de reserva dos últimos concursos para recompor os efetivos do Ibama e do ICMBio. Antes, contudo, é preciso consolidar um orçamento especial para ambos os órgãos: “A situação no fim do governo Bolsonaro é a pior possível. Há contratos de terceirizados que não são pagos há meses, contratos de vigilância patrimonial, manutenção de equipamentos e fornecimento de combustíveis para as viaturas, que foram suspensos pela absoluta falta de pagamento. São recursos estratégicos para a retomada do combate ao desmatamento da Amazônia”. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1239 DE CARTACAPITAL, EM 21 DE DEZEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Desmatamento zero?”

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