Sustentabilidade
De quem é esse jegue?
Com a pele cobiçada pelos chineses, o jumento corre sérios riscos de extinção


Imortalizado na música de Luiz Gonzaga, na poesia de Patativa do Assaré, no cordel de J. Borges, na obra de Ariano Suassuna e na tela de Candido Portinari, o jumento, também conhecido como jegue e Equus asinus, corre sério risco de extinção. Segundo dados do IBGE e da Coordenação de Boas Práticas Agropecuárias da Secretaria de Defesa e Inspeção Agropecuária do Ministério da Agricultura, entre 2011 e 2023, o Brasil abateu mais de 85% da população de jumentos, hoje estimada em 145 mil indivíduos. O número pode ser ainda menor, diante da velocidade do abate para atender ao mercado chinês, que utiliza a pele do jegue para extrair uma substância chamada ejiao, espécie de colágeno celebrado na medicina local. Sem comprovação científica, o medicamento teria propriedade rejuvenescedora. No Brasil, um projeto de lei quer proibir a mortandade do jegue.
O PL foi aprovado pela Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados e seguiu para a Comissão de Constituição e Justiça. “O jumento teve uma grande participação no processo de desenvolvimento do Brasil e, simbolicamente, é importante para várias religiões, em especial o cristianismo. Com o tempo, começou-se a explorar a carne e, principalmente, os produtos derivados do couro para exportação, notadamente para a China. Essa matança ocorre em várias partes do mundo e não é diferente aqui. Se a gente não tomar nenhuma medida, vamos perder a espécie”, alerta o deputado Nilto Tatto, relator do PL na Comissão de Meio Ambiente. “O jumento controla o crescimento de plantas invasoras e dispersa sementes. Sua extinção pode ter consequências graves para a biodiversidade. A única medida capaz de frear esse quadro é a suspensão imediata do abate”, completa o deputado Célio Studart, do PSD cearense, um dos defensores do PL.
Em 2018, o Conselho Regional de Medicina Veterinária da Bahia, sede dos três frigoríferos de abate no País, publicou um estudo que previa a possibilidade de extinção dos jumentos em cinco anos. “Nesse período ganhamos um ano porque conseguimos uma liminar na Justiça Federal válida em todo Brasil. Mas o TRF-1 suspendeu a nossa liminar, numa decisão do ministro Kássio Nunes Marques, que ainda não estava no STF. Ele deu um parecer com um parágrafo, sem fundamentação, simplesmente suspendendo a liminar”, explica o advogado Yuri Fernandes Lima, consultor Jurídico da The Donkey Sanctuary, organização britânica instalada em 35 países. A gana dos chineses pelo couro do jegue dizimou a espécie em várias partes do mundo, inclusive na própria China, além da Índia e da África. “Os chineses precisam de toneladas de colágeno para a produção do medicamento. São 5,9 milhões de animais abatidos por ano e a demanda só cresce, enquanto a população mundial do jumento declina drasticamente”, explica a bióloga Patrícia Tatemoto, coordenadora do The Donkey Sanctuary nas Américas.
A exportação da pele do jegue está inserida nas várias parcerias do governo baiano com empresários chineses, que vão dos negócios em mineração à fabricação de carros elétricos. Em maio do ano passado, em passagem pelo estado, o presidente Lula deixou escapar a informação de que um empresário do ramo esteve, ao lado do governador petista Jerônimo Rodrigues, na comitiva brasileira em visita à China. Procurado pela reportagem, o governo baiano preferiu não comentar. “O comércio do jumento faz parte de um pedacinho do bolo, mas na verdade o negócio é muito maior. É importante para o Estado manter essa cadeia para que o resto também aconteça. São relações internacionais de cooperação e o jumento faz parte desse arcabouço”, destaca o veterinário Pierre Escodro, professor da Universidade Federal de Alagoas e coordenador de um grupo de estudo que busca proteger a espécie e reintroduzi-la na paisagem.
Um projeto de lei no Congresso quer proibir o abate
É comum ouvir relatos de que os jegues perderam sua utilidade, substituídos, ao longo dos anos, por motos, principalmente nas áreas rurais. Ao perder a função de transporte, muitos foram descartados pelos donos e passaram a perambular pelas estradas, o que ampliou o risco de acidentes de trânsito, um argumento a mais para os defensores da comercialização da pele. Sem uma política pública voltada para proteger o Equus asinus, somada à ilegalidade e à falta de fiscalização do abate, crescem as denúncias de furtos, maus-tratos e venda clandestina antes de os animais serem apeados. Na maioria das vezes, são capturados nas estradas ou comprados a preços irrisórios, transportados em caminhões sem água, comida ou laudo sanitário por milhares de quilômetros, até chegar nas chamadas fazendas de criação, onde aguardam a hora da morte. Às vezes o animal fica tão debilitado que chega ao frigorífero já sem vida.
“Não existe uma cadeia produtiva de jumento, até por não ser viável. O animal demora, em média, 13 meses para a gestação e precisa de três anos até alcançar a fase do abate”, descreve Escodro. Em 2023, o Ministério do Meio Ambiente abriu edital para selecionar instituições federais de pesquisa interessadas em criar um protocolo de produção de colágeno de jumento sem abate animal, a partir da exploração de métodos como agricultura celular e fermentação de precisão. O ministério também se posicionou a favor do PL. “Ao contrário da pecuária convencional, onde há uma cadeia de produção estabelecida, no caso dos jumentos não existe reposição adequada. O abate ocorre sem que haja um número suficiente de nascimentos e criações para manter a população desses animais”, ressalta Vanessa Negrini, coordenadora do Departamento de Direitos Animais da pasta.
Além de a maior parte dos Equus asinus estar no Nordeste, os jegues da região desenvolveram uma carga genética única, motivo pelo qual os defensores do animal tentam transformá-lo em patrimônio cultural e fortalecer a luta contra o abate. “O jumento nordestino tem uma linhagem que não existe em nenhum outro lugar do mundo. Uma riqueza sob risco de ser extinta”, salienta Tatemoto. “Há um processo no Iphan para reconhecer o jumento como patrimônio histórico e cultural. Fazemos um levantamento de todas as obras de arte e a relação de artistas que prestam homenagem ao jumento”, completa Lima. Além da genética e da cultura, o advogado garante que o abate do animal fere o artigo 225 da Constituição, que veda práticas que levem espécies à extinção. Ele cita ainda o artigo 32 da lei de crimes ambientais, que tipifica os maus-tratos contra animais. •
Publicado na edição n° 1309 de CartaCapital, em 08 de maio de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘De quem é esse jegue?’
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