Sustentabilidade

Artigo: Jovens caiçaras em defesa da vida e do território tradicional na Jureia

‘Caiçaras querem garantir seu território e preservar suas tradições’

(Foto: Arquivo da Comunidade da Jureia)
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Por Anderson do Prado Carneiro*

A decisão da 1ª Câmara Reservada ao Meio Ambiente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no último dia 16 de julho, foi comemorada como uma vitória pela comunidade caiçara do Rio Verde e Grajaúna, na Jureia.

 

Em julgamento de recursos da Fundação Florestal e da Fazenda do Estado, os desembargadores indeferiram, por unanimidade, pedido que permitiria continuar com ação de demolição de moradias caiçaras que, no dia 04 de julho de 2019, deixou outras duas famílias desabrigadas na comunidade.

A moradia de Edmilson, Karina e Martim, de apenas sete meses de idade, resta protegida e o devido processo judicial continua na Comarca de Iguape.

O processo teve início em ação ajuizada pela Defensoria Pública de SP para garantir o direito de permanência da família após a demolição de duas moradias caiçaras sem ordem judicial.

A ação da Fundação Florestal, com apoio da Polícia Militar Ambiental, fora declarada ilegal pelo Juiz da 1ª Vara da Comarca de Iguape, em decisão liminar favorável à comunidade.

A decisão no TJSP expressa o reconhecimento inédito, pela instância máxima do Judiciário paulista, dos direitos territoriais da comunidade.

É um fôlego para um povo que resistiu à especulação imobiliária e a grandes empreendimentos e que, desde a criação da Estação Ecológica Jureia-Itatins, em 1986, busca sobrevivência em meio às restrições sobre seu modo de vida, impostas por uma política ambiental que criminaliza os povos tradicionais.

Apesar da importante decisão, a continuidade da comunidade e do seu modo de vida ainda não está garantida.

Daiane, Heber e Marcos na produção de farinha de mandioca, base da alimentação caiçara. (Foto: Vanessa Muniz)

As duas famílias desabrigadas, dos jovens casais Heber do Prado e Vanessa Muniz, gestante nesse momento, e Marcos do Prado e Daiane Neves, estão sendo impedidas de continuar suas vidas segundo suas tradições.

Quem casa quer casa, diz um ditado caiçara, e suas casas são um direito das famílias tradicionais de acordo com a legislação da Estação Ecológica.

Contudo, após terem seus direitos negados pela Fundação Florestal seguidas vezes, mesmo após diversas tentativas de diálogo por parte da comunidade, a necessidade bateu à porta e os caiçaras construíram suas moradias, seguindo orientações dos mais velhos, buscando as taperas, lugares onde seus antepassados viveram, com condições dignas, água abundante e solo fértil.

Os jovens caiçaras já estavam estabelecidos em suas moradias quando o sonho e os direitos foram interrompidos pela ação violenta dos órgãos ambientais.

Sua existência segue sendo negada pela gestão da EEJI, que mais recentemente ignorou as solicitações de roça de subsistência de Heber e Marcos, dessa vez comprometendo a segurança alimentar de suas famílias.

A tradicionalidade da família Prado, que ocupa ancestralmente esse território, já foi amplamente reconhecida, inclusive em documentos produzidos sob encomenda pelos órgãos ambientais. Ainda assim, seus descendentes continuam sendo criminalizados por viverem de forma tradicional caiçara nesse território.

Por tradicional, entende-se que as principais atividades desenvolvidas por eles guardam os conhecimentos transmitidos ao longo das gerações, produzidos a partir da vivência nesse território específico, e que são uma das chaves de conservação da Mata Atlântica.

Guardas parque em ação de demolição, em 04 de julho de 2019, declarada ilegal por Juiz de Iguape. (Foto: Arquivo da comunidade)

No entanto, para a comunidade, isso não significa viver de forma estática no passado.

Devido a esse conflito histórico, os caiçaras buscaram parcerias com as universidades públicas para comprovar a grande relevância cultural e ambiental de seu modo de vida e, desde então, têm desenvolvido trabalhos em colaboração com pesquisadores e pesquisadoras das mais diversas áreas do conhecimento, como a antropologia, o direito, a biologia e a ecologia.
Heber e Marcos participaram ativamente desse processo.

Nos últimos quatro anos, tiveram formação técnica em geoprocessamento, interpretaram fotografias aéreas e produziram mapas do território referentes às últimas décadas com outros comunitário e equipe acadêmica.

Coordenado por docente da Universidade Federal do ABC, o trabalho confirma ocupação anterior à criação da Estação Ecológica e mostra que a agricultura itinerante manejou uma ínfima área do território e com alta capacidade de regeneração.

Em outro estudo, a equipe mapeou também o grande êxodo das comunidades caiçaras, promovido pelas restrições aos meios de vida decorrentes da sobreposição do território pela EEJI.

Mapa do território em 1962, produzidos a partir da colaboração entre caiçaras e acadêmicos. O mosaico de ortofotos destaca roças, capoeiras e capoeirões, sendo esses últimos áreas abandonadas em diferentes estágios de regeneração da floresta.

Ainda nesse sentido e buscando também formação para o fortalecimento das práticas tradicionais e comunitárias, Vanessa e Daiane estão cursando Licenciatura em Educação do Campo na Universidade Federal do Paraná.

O curso é pensado para as populações do campo e acontece em regime de alternância, favorecendo a permanência na comunidade ao invés de promover sua saída.

Isso demonstra como os caiçaras querem garantir seu território e preservar suas tradições, porém sempre buscando formas de aperfeiçoar seu modo de vida e o uso responsável dos recursos naturais, se dispondo, inclusive, a pensá-lo cientificamente ao longo do tempo, para assegurar que as próximas gerações vivam no território e reproduzam sua cultura, como fizeram, aliás, seus ancestrais durante séculos.

A atuação das jovens famílias caiçaras e a defesa de sua permanência no território tradicional são o marco atual da justiça socioambiental na Jureia.

*Anderson do Prado Carneiro é presidente da Associação dos Jovens da Jureia (AJJ)

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