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A batalha do lixo

O governo federal aumenta a taxação sobre resíduos sólidos importados para proteger a cadeia nacional de reciclagem

Contaminação. Os contêineres com aparas de papel por vezes vêm misturados com resíduos hospitalares e até fraldas – Imagem: Maurício Lima/AFP
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Uma decisão do Comitê ­Executivo da Câmara de Comércio Exterior ­(Camex) pode começar a dar novos contornos a um dos setores mais desassistidos da economia e que vive uma de suas piores crises: o comércio de materiais recicláveis. A partir de agosto, as importações de resíduos de papel, papelão e vidro, até então isentas, foram taxadas em 18%. O plástico passa de 11,2% para o mesmo porcentual. A medida, de acordo com o órgão, visa “fortalecer a cadeia nacional de reciclagem de resíduos sólidos e minimizar impactos nocivos desses materiais ao meio ambiente brasileiro”.

De 2019 a 2022, as compras externas de papel, plástico e vidro para reciclagem cresceram 109,4%, 7,2% e 73,3%, respectivamente. “Esse aumento das importações de resíduos sólidos”, acrescenta a nota emitida pela Camex, “tem o potencial de afetar o preço de venda dos materiais recicláveis comercializados pelos catadores no Brasil e que acabam deixando suas atividades”. Não bastasse, “provoca impactos negativos no meio ambiente pelo aumento do depósito de resíduos em aterros e lixões”.

Uma nota técnica da Secretaria Nacional de Meio Ambiente Urbano e Qualidade Ambiental, vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, aponta que, entre janeiro de 2022 e fevereiro deste ano, o Brasil importou 19.770 toneladas de fragmentos e resíduos de vidro, 6.654 toneladas de resíduos de plástico e 73.926 toneladas de papel e papelão para reciclagem. Os números são da base de dados do Sistema Integrado de Comércio Exterior, Siscomex.

A compra de materiais descartados por outros países fez o preço dos recicláveis despencar no mercado doméstico

A compra de lixo descartado por outros países começou a crescer no fim de 2020, segundo a base de dados da ONU Comtrade, divisão das Nações Unidas responsável pelo monitoramento do comércio internacional. De janeiro a abril do ano seguinte, empresas sediadas no País importaram mais de dez vezes a quantidade de aparas de papel em relação ao mesmo período de 2019, sob a justificativa de que as medidas de isolamento social adotadas durante o período mais agudo da pandemia de Covid-19 fizeram a coleta de materiais recicláveis despencar nas capitais brasileiras.

Além de desregular os preços praticados no mercado doméstico, os contêineres com aparas de papel vinham, por vezes, misturados a resíduos contaminados por materiais de uso hospitalar e até mesmo fraldas geriátricas usadas. Uma denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal do Rio Grande do Sul aponta que, de dezembro de 2019 a fevereiro de 2020, desembarcaram no Porto de Rio Grande 65 contêineres vindos de Fort Lauderdale, nos EUA, contendo lixo proveniente de shoppings, escolas, supermercados e hospitais de diversos estados da Costa Leste americana.

Os coletores de materiais recicláveis sentiram os impactos no bolso. O papelão, que chegou a valer 1,20 real o quilo, agora custa 35 centavos. De 2022 para cá, o preço do papel despencou de 45 para 10 centavos. O alumínio das latinhas de cerveja e refrigerantes valia 6,50 reais, mas agora gira em torno de 4 reais. Áurea Vanuza da Silva, de 34 anos, recolhe resíduos para reciclagem desde a adolescência, e viu a renda mensal encolher de 1,4 mil reais para os atuais 700. “Aprendi tudo com o meu padrasto. Minha irmã também é catadora e meu filho de 14 anos deve seguir a mesma profissão.”

Apesar de garantir o sustento de 800 mil brasileiros, esse mercado ainda é incipiente. Em 2020, o País produziu 82,5 milhões de toneladas de lixo, segundo a Associação Brasileira das Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais. Desse montante, 80% dos resíduos sólidos poderiam ser reaproveitados de alguma forma, mas somente 4% passaram, de fato, pelo processo de reciclagem. Estima-se que 25 árvores são poupadas a cada tonelada de papel reciclado. Um olhar mais cuidadoso para o setor poderia facilitar os esforços do governo para neutralizar as emissões de carbono.

Impacto. Os catadores viram a renda despencar com as importações de recicláveis – Imagem: iStockphoto

A falta de incentivo por parte dos municípios é outro entrave. Segundo o Atlas Brasileiro de Reciclagem, fruto de parceria da Associação Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis com entidades públicas, organizações privadas e centros de pesquisa, apenas 23% das prefeituras brasileiras organizam algum tipo de coleta seletiva dos resíduos sólidos. O Brasil tem pouco mais de 2 mil cooperativas de reciclagem em funcionamento, 82% delas legalmente formalizadas nos registros da Receita Federal. Essas entidades estão distribuídas em todos os estados da federação.

Quando há vontade política, os problemas são mitigados. No município gaúcho de Cruz Alta, quatro pequenas associações de catadores fizeram uma parceria com a universidade local para organizar a coleta seletiva. Com apoio do CNPq, da Petrobras, da Fundação Banco do Brasil e do Senai, elas construíram um galpão, adquiriram equipamentos, como prensas, esteiras e balanças, além de caminhões. Resultado: os resíduos sólidos de oito bairros passaram a ser reciclados, reduzindo o volume de lixo no aterro municipal e gerando renda para dezenas de trabalhadores.

Em 2021, com o fim da parceria com a Unicruz, os catadores buscaram apoio da prefeitura. A primeira medida foi transformar as associações em uma cooperativa, a Unicca, que hoje conta com 42 associados e cuida da coleta seletiva em 46 bairros da cidade. O salário dos motoristas e dos coletores, bem como os custos tributários e de manutenção dos veículos, são integralmente cobertos pelo Poder Público. Os trabalhadores têm proteção previdenciária garantida como qualquer outro celetista. Pode parecer o básico, mas é uma enorme conquista para quem sempre atuou na informalidade. “Ainda temos muito no que avançar, mas já demos passos importantes”, celebra Lidiane Jaques, presidente da Unicca.

Em 2020, o País gerou 82,5 milhões de toneladas de lixo. Somente 4% desses resíduos foram, de fato, reciclados

Para a procuradora-chefe do Ministério Público do Trabalho no Paraná, Margaret Matos de Carvalho, o financiamento de cooperativas de catadoras e catadores é um objetivo expresso no artigo 7º da Lei 12.305/2010, que estabelece os princípios e diretrizes da Política Nacional de Resíduos Sólidos. Ou seja, uma obrigação do Poder Executivo municipal. As prefeituras ou empresas contratadas não podem se esquivar da responsabilidade de promover a coleta seletiva e integrar os catadores no processo. Garantir uma renda segura para esses profissionais gera, ainda, outros benefícios indiretos, como o aquecimento do comércio local, a preservação do meio ambiente e a interrupção do trabalho infantil, uma realidade inescapável para muitas famílias em situação de extrema pobreza.

Recentemente, o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis apresentou ao governo federal uma série de reivindicações. Pedem o pagamento pelos serviços ambientais prestados pelos trabalhadores, o fim da bitributação de produtos da cadeia de reciclagem e a retomada da isenção do PIS e do ­Cofins nas vendas de materiais à indústria de transformação, benefício derrubado pelo Supremo Tribunal ­Federal em 2022.

O engenheiro Rubens Born, mestre e doutor em Saúde Pública e Ambiental pela USP, defende melhorias nas condições do trabalho dos catadores. Esse papel, ressalta o ambientalista, é de responsabilidade dos governos em todas as esferas – municipal, estadual e federal. “O Brasil precisa repensar seu sistema de limpeza pública e coleta de resíduos de forma mais integrada. A maneira como vem sendo feita só beneficia as empresas que recolhem lixo em grande quantidade, enquanto os catadores são colocados à margem, como personagens quase invisíveis do processo.” •

Publicado na edição n° 1276 de CartaCapital, em 13 de setembro de 2023.

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