Sociedade

Vítimas de contaminação por chumbo terão centro de tratamento

Após mais de 30 anos, conterrâneos de Caetano Veloso conseguem decisão na Justiça, mas seguem sem indenização

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Após mais de três décadas de omissão, um dos casos mais graves de contaminação no Brasil está prestes a ter um fim. Por determinação da Justiça Federal da Bahia, a União e a Fundação Nacional de Saúde devem construir, dentro de seis meses, um centro de tratamento para vítimas de contaminação por chumbo em Santo Amaro da Purificação.

Situada no recôncavo baiano, a pacata cidade-berço dos artistas Caetano Veloso e Maria Bethânia, é um depósito de escória de chumbo a céu aberto. Escondido na pavimentação das ruas e nas fundações das casas da cidade, o minério contaminou boa parte da população.

Conforme mostrou o site de CartaCapital em uma série de reportagens publicadas em 2012, os moradores de Santo Amaro foram obrigados a conviver com os sintomas da intoxicação por chumbo e com o descaso das autoridades por mais de três décadas. Isso porque, durante muitos anos, a contaminaçaõ era sub-diagnosticada em um jogo de empurra entre os médicos locais e a companhia responsável pela atividade. Além disso, quando diagnosticados com intoxicação, os pacientes não tinham acesso a tratamentos especializados.

Até o momento, dos 3.500 antigos trabalhadores da companhia, 948 já morreram em razão de uma possível contaminação.

Histórico. Durante a década de 1960, Santo Amaro da Purificação sediu as atividades da Companhia Brasileira de Chumbo (Cobrac), uma subsidiária da empresa francesa Metaleurop, então maior produtora do metal pesado no mundo. Durante seu funcionamento, a Cobrac não dava aos resíduos do metal a destinação correta. Pelo contrário: a empresa muitas vezes doava a escória do chumbo para quem quisesse. Aproveitando inconsequentemente este ato de bonança, as legislaturas municipais utilizaram a escória na pavimentação de ruas e na fundação de prédios, espalhando a contaminação por toda parte.

No auge de sua produção, a Cobrac, chegava a produzir 30 mil toneladas de chumbo ao ano, o que correspondia a 5% da produção mundial. Quando fechou as portas, em 1993, a companhia havia comercializado 900 mil toneladas de chumbo. Mas, para a população de Santo Amaro da Purificação, o legado passou longe da prosperidade, deixando em seu lugar os sintomas da contaminação por chumbo, também chamada de saturnismo.

O saturnismo se transformou em um problema de saúde pública na região. Segundo uma pesquisa da Universidade Federal da Bahia, cerca de 18 mil pessoas estão contaminadas. Para atender à demanda, um centro de tratamento terá de ser construído para abrigar esses pacientes

“Desde que a empresa começou a atuar existia casos de saturnismo. Só que eles foram sub-diagnosticados por muito tempo”, afirma Itanor Carneiro Júnior, advogado que atua junto ao Ministério Público na cidade baiana e fez parte do Grupo de Trabalho do Congresso Nacional que analisou a situação do município.

Os sintomas da doença podem ser desde danos neurológicos, mudanças de comportamento, perda de movimentos e dores abdominais agudas que não cessam com analgésicos.  Além disso, as mortes decorrentes destes problemas não são raras.

O operário Rubem Antonio Soares conhece bem os sintomas. “(Tenho) problema de pressão arterial, meus ossos doem e eu não posso caminhar, não tenho força mais para nada”, disse em entrevista ao Jornal Nacional exibida na segunda-feira 8.

Agora, com a construção do centro, os moradores esperam conviver melhor com a doença de difícil tratamento. De acordo com o médico Rodrigo Muniz de Andrade, do Serviço de Saúde Ocupacional do Hospital das Clínicas de São Paulo, o procedimento para casos de intoxicação de chumbo é realizado com quelantes, substâncias que se agarram ao chumbo presente no corpo. Segundo o médico, a primeira coisa a se fazer é interromper a exposição do paciente ao material tóxico. Depois, é preciso avaliar o grau de intoxicação para decidir se a melhor opção é esperar o organismo se livrar do material, o que pode durar 20 ou 30 anos, ou iniciar a terapia com quelantes.

Justiça lenta, empresa omissa. Conforme denunciado em janeiro do ano passado, desde 1993, ano em que a mineradora encerrou suas atividades na cidade baiana, foram abertos 1.600 processos indenizatórios por danos morais e materiais contra a companhia na Justiça. Essas ações foram impetradas pelo advogado Antônio José, contratado pela Associação de Vítimas do município.

Grande parte dos 1.600 processos ficou 13 anos à espera de julgamento, emperrada pelo Judiciário local, na época a cargo da juíza Maria do Carmo Tomasi – atual desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho da Bahia.

Foi apenas após a resolução do Supremo Tribunal Federal (STF), que determina que as ações de caráter trabalhista fossem julgadas pela Justiça do Trabalho, que os processos começaram a avançar.

Por meio de uma manobra jurídica, a mineradora Cobrac, hoje sob o nome de Plumbum Mineração e Metalurgia Ltda, passou a registrar as comunicações de acidentes de trabalho pelo seu atual CNPJ, registrado no estado de São Paulo. Contudo, o entendimento da Justiça é que essas comunicações são de competência da Justiça Trabalhista do estado em que ocorreram os acidentes, no caso o Estado da Bahia.

Como os processos estão sendo registrados por São Paulo e os sistemas dos Tribunais Regionais não são integrados, as informações dos trabalhadores não se cruzavam, criando um imbróglio burocrático que atrapalha e atrasa o julgamento. “Por meio deste artifício, boa parte das ações indenizatórias está prescrevendo”, lamenta Itanor. “Dessa forma, após cinco anos sem julgamento as ações se tornam inválidas e, mesmo que a empresa seja considerada culpada pelo acidente de trabalho, as famílias não têm mais direito à indenização”, conclui.

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