Sociedade

Violência afeta a saúde mental de 1 em cada 3 moradores do Complexo da Maré

Estresse, ansiedade, depressão e tentativas de suicídio são alguns dos problemas apontados pelos mais de mil entrevistados

Os meninos improvisam um pingue-pongue na rua (Foto: Antonello Veneri)
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Um terço dos moradores do Complexo da Maré, conjunto formado por 16 favelas no Rio de Janeiro, afirma ter sua saúde mental afetada pela violência. É o que revela um levantamento inédito na região, realizado pela organização inglesa People’s Palace Projects e pela Redes da Maré. O estudo aponta ainda que 63% dos entrevistados disseram sentir medo de serem alvejados por um tiro onde moram e que 71% indicaram um temor ainda maior com a possibilidade de que alguém próximo seja a vítima.

A pesquisa Construindo Pontes acompanhou mais de mil moradores da região entre 2018 e 2020 e traçou um panorama da violência e seus principais reflexos nessas comunidades.

Segundo o levantamento, a principal forma de violência apontada são os tiroteios. Nada menos do que 44% dos entrevistados estiveram em meio a um tiroteio nos 12 meses anteriores, destes, 73% passaram pela experiência em mais de uma ocasião.

Ainda que nem todos tenham testemunhado tiroteios, 25,5% dos moradores tiveram alguém próximo ferido ou assassinado. De acordo com a pesquisa, 24% viu alguém ser espancado ou agredido nos 12 meses que precederam a entrevista, destes, em 15% dos casos, a situação ocorreu mais de uma vez.

Outra situação relatada por boa parte dos entrevistados foram as invasões domiciliares. Ao todo, 13% relataram que tiveram sua casa invadida nos meses que sucederam a pesquisa. Em 47% destes casos, a violência se repetiu.

São situações cotidianas, que restringem a circulação das pessoas, produzem traumas, afetam a saúde física e mental e reduzem a confiança das pessoas nas instituições – já que muitas vezes é a própria polícia a responsável pelas violações de direitos”, destaca Eliana Silva, diretora da Redes da Maré

Irone Santiago, moradora da Maré, teve seu filho atingido por um tiro. Ela conta que a situação traz consequências ‘inimagináveis’ para quem vive, o que torna o debate importante, mas difícil de ser realizado.

“Como se ter saúde mental se você mora em um lugar onde você não tem o seu direito respeitado?”, questiona. “É complicado falar sobre a pessoa ter saúde mental, não tem como ter saúde mental. É difícil falar sobre estas questões, passando pelo que passei. E ainda o próprio Estado não colabora pra isso, pra que você tenha saúde, muito menos saúde mental”, explica, alertando que o ‘único cuidado’ oferecido são psicotrópicos e remédios que fazem ‘se sentir louco’ sem um acompanhamento adequado.

Violência causou ansiedade e até pensamentos suicidas

Estas ‘situações cotidianas’, conforme apontam os dados, são as responsáveis por graves transtornos entre os moradores do complexo. Problemas como estresse pós-traumático, ansiedade, depressão e tentativas de suicídio são apenas algumas das adversidades que acometem pouco mais de um terço das pessoas que habitam as 16 favelas cariocas.

Nada menos do que 26,6% se disseram depressivos pela violência e 25,5% apontaram sentir ansiedade. Entre aqueles que relataram terem estado em meio a tiroteios, 12% informaram que passaram a ter pensamentos sobre suicídio e 30% pensaram mais sobre morte.

“A violência afeta a saúde mental dos moradores da Maré de forma bem cruel, objetiva e concreta”, afirma James Douglas de Oliveira, morador da favela Rubens Vaz

O jovem conta que, por conta da violência, já foi diagnosticado com crise de ansiedade, depressão profunda e, apesar de não ter tentando, pensou em tirar a própria vida. Por ter sofrido as principais consequências de estar em um ambiente cercado pela violência, Oliveira destaca a importância do amplo debate sobre a saúde mental no âmbito das comunidades. “Precisamos falar de saúde mental na favela, porque é um tema que, em níveis variados, atinge todos os moradores”, defende Oliveira.

Moradores também sentiram os reflexos negativos dos traumas em outros campos da saúde. 44% apontaram dificuldade para dormir; 33% disseram ter perda de apetite; 28% acusaram enjoos e mal-estar no estômago; e 21,5% destacaram que sentem calafrios ou indigestão com a violência.

Irone é um exemplo desse drama. Além dos sintomas emocionais do episódio violento enfrentado pelo filho, também adoeceu fisicamente. “Eu ia pra academia, malhava e achava que estava bem depois do que aconteceu com meu filho, aí passo mal, vou ao hospital e descubro que tinha um aneurisma gigante por conta do que eu vivi”, relembra a moradora que após sofrer as consequências do trauma procurou ajuda especializada para lidar com as questões.

Ações buscam ampliar acesso a tratamentos

Diante do grave panorama apresentado pela pesquisa, a Rede Mares e a People’s Palace Projects desenvolveram ações que buscam combater os principais transtornos psicológicos causados pela violência nas favelas.

Uma destas ações é o Guia de Saúde Mental da Maré, publicação que reúne orientações básicas aos moradores sobre o tema. O guia será distribuído nas 16 favelas que integram o complexo durante a Semana de Saúde Mental da Maré, a Rema Maré, evento programado para este final de agosto. A iniciativa conta com diversas atividades culturais, debates e intervenções e está prevista para ocorrer anualmente.

“As dores e os sintomas de saúde mental não são evidentes como os de uma perna quebrada, deles não se tratam com um remédio como os que usamos para dores de cabeça”, alerta o diretor teatral e principal pesquisador de Construindo Pontes, Paul Heritage. “Nas intervenções artísticas que preparamos para a campanha Rema Maré, perguntamos se devemos lidar com este problema de forma individual ou coletiva. Como posso melhorar a minha saúde mental e ajudar a cuidar dos que estão próximos a mim?”, questiona.

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