Sociedade

Valeu a pena a luta contra a ditadura?

Filha de general perseguido e mãe ativista, Eugenia Zerbini relembra a vida de alguém com “filiação perigosa”

Euryale de Jesus Zerbini, general perseguido pelo regime
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O número do meu nome: 1964. Aquele entranhado na pele, que sempre volta à memória. Definidor da minha vida, eu, filha de um general cassado pelo golpe militar e de uma mãe cuja voz discordante soou logo nos primeiros dias após aqueles idos de março, em que o governo constituído foi subtraído do poder.

Por ter sido legalista e não ter apoiado os golpistas, meu pai, o general Euryale de Jesus Zerbini (1908-1982) foi encarcerado no Forte de Copacabana (RJ) por 45 dias. Nos 20 primeiros, incomunicável, sem que a família soubesse seu paradeiro. Pelo Ato Institucional nº 1, teve os direitos civis cassados por 10 anos e foi reformado. O mesmo Exército no qual se alistara aos 15 anos. Contra a vontade de meu avô, que o queria médico como os outros dois irmãos.

Levada pela consciência social acurada e – por que não? – pelo amor e admiração que nutria pelo marido, mamãe, a advogada Therezinha Godoy Zerbini (1928-) cedo se declarou contra a ditadura. Recordo-me dela, às vésperas do Dia das Mães de 1964, escrevendo uma carta, publicada no fórum dos leitores do extinto Última Hora. Frisava que, nesse dia festivo, fossem lembradas as mães apartadas de seus filhos, em razão do arbítrio que se abatera sobre o país. Presos? Foragidos? Mortos?

Seis anos mais tarde, mamãe foi detida. Ilegalmente, uma vez que sem mandado de prisão. Viveu sua estação no inferno, passando seis dias no DOI/CODI (Operação Bandeirantes, em SP). Ficou uma semana no DOPS e seis meses no Presídio Tiradentes. Nele, foi contemporânea da presidente Dilma. Por fim, em 1975, mamãe criou o Movimento Feminino pela Anistia (MFPA), a primeira movimentação da sociedade civil em prol da redemocratização, possibilitando o retorno à pátria das lideranças políticas exiladas.

Essa é a trama familiar que me envolveu a partir de 1964. Decorrido meio século, minha memória tornou-se História. Porém, é a gramática da memória que ainda me acompanha.

Minha dor não é nada frente às dores que flagelaram tantas famílias, com seus desaparecidos, seus executados, seus enlouquecidos. Em face dos efeitos nefastos que mais de 20 anos de ditadura representaram politicamente para o país, minhas dores pessoais e o número “1964” que trago tatuado sob a pele, em algum lugar do meu corpo, não têm sentido. Ainda assim, essa dor, muito pessoal, doeu.

Em abril de 1964, aos 10 anos, num tranco, tornei-me adulta. Na minha visão, papai havia morrido e mamãe não me contava. Ela só recomendava que eu fosse forte. Assim, fui forte, em fevereiro de 1970, ao dirigir-me, com 16 anos, para a Operação Bandeirante, levando itens de uso pessoal para minha mãe, sem saber da ignomínia que me aguardava. Fui forte ao tomar conta da casa, durante sua prisão. Nem que essa fortaleza disfarçasse um sentimento de profundo abandono, incomunicabilidade, ultraje e solidão.

E eu era ainda apontada como a diferente, a “filha de comunista” (mas mamãe era tão católica!). Se meus pais haviam sido presos, “alguma coisa eles deviam ter feito”, era o que eu ouvia. Até em família.  As consciências eram então acalmadas pelos ganhos financeiros do milagre brasileiro.

Em 1973, segundanista no curso de Direito da USP, fui obrigada a estudar, em Direito Constitucional, “A democracia possível”, onde o autor – hoje professor titular aposentado  -defendia os horrores da ditadura instalada em 1964, alegando que o país se encontrava em uma guerra interna.

Em 1977, o Serviço Nacional de Informação (SNI) requereu meu desligamento do pós-graduação que cursava na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). O motivo: filiação perigosa. Meu lugar foi garantido pela ameaça de um dos professores (ex-diplomata, também cassado) de levar o caso ao conhecimento da Ordem dos Advogados do Brasil. Dessa forma, o tempo foi passando, eu com a impressão de que a vida era uma sucessão de dias cinzentos.

Decidi completar minha formação no exterior. Passei temporadas na Europa e nos Estados Unidos, estudando e depois trabalhando. Segui uma bela carreira no setor financeiro, onde o que importou foi meu conhecimento e experiência. Passei a me ver como uma sobrevivente.

Veio a redemocratização. Para meu terror, por um lado, colegas de faculdade até hoje confessam que a volta dos militares seria a solução para os problemas atuais. Uma prima afirmou sentir saudades do presidente Geisel. Por outro, figuras que compactuaram notoriamente com a ditadura, passaram a circular como ícones da resistência.

Muitas vezes questiono se os sacrifícios que presenciei valeram a pena. O sangue derramado durante o período de exceção, afinal, fertilizou o solo de nossa nação? Meu consolo é a lembrança de um ditado africano, segundo o qual tanto a vitória como a derrota vestem apenas os Deuses; aos humanos, cabe viver a vida.

*Eugenia Zerbini, advogada, mestre e doutora em Direito, escritora, mãe de uma filha. Seu relato é parte de uma série de artigos para o especial Ecos da Ditadura, sobre os 50 anos do golpe militar

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