Sociedade

USP viola estatuto para se desfazer de hospital

O conselho da Universidade de São Paulo usou uma manobra gramatical para se desvincular de hospital em Bauru que é referência mundial em cirurgias craniofaciais

Fachada do Centrinho, em Bauru: hospital modelo pode deixar a USP
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Um erro gramatical básico pode ter sido o expediente utilizado pelos conselheiros da Universidade de São Paulo (USP) para tentar salvar as contas da maior instituição educacional do País. Com o cuidado de não insinuar premeditação do Conselho, a Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo (Adusp) afirma que a má interpretação de uma vírgula no estatuto da universidade foi a responsável pela aprovação da desvinculação do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais (HRAC), em Bauru (SP), em favor da Secretaria Estadual de Saúde.

Referência mundial em cirurgias craniofaciais, o Centrinho, como é conhecido o HRAC, teve aprovada sua desvinculação da USP no dia 26 de agosto deste ano pelo Conselho Universitário, órgão máximo da USP, formado pelo reitor, vice-reitor, pró-reitores, além de representantes de alunos, professores e órgãos da universidade. A decisão de seus 115 membros ignorou uma vírgula no item 13 do artigo 16 do estatuto, o que viola, portanto, o principal regulamento da instituição.

O trecho utiliza duas vírgulas para destacar os “Núcleos de Apoio”, únicos setores na USP com autorização para serem criados, extintos ou remanejados sem a necessidade de dois terços dos votos do Conselho. Diz o item 13 sobre as “atribuições” do Conselho: “deliberar, por dois terços da totalidade de seus membros, sobre a criação, incorporação e extinção de Unidades, Museus, órgãos de Integração, exceto os Núcleos de Apoio, e Órgãos Complementares”. Ao ignorar a última vírgula do trecho, o Conselho acabou abarcando os “Órgãos Complementares” na exceção – justamente a categoria em que o HRAC se enquadra. Se a vírgula fosse respeitada, a desvinculação do hospital precisaria ser aprovada por, no mínimo, 76 conselheiros, mas acabou passando por maioria simples – 63 votos a favor, 27 contra e 16 abstenções.

Apesar de a Adusp afirmar que não é possível falar em má fé, há indícios de que o conselho violou o estatuto de forma deliberada. Na mesma votação, e ainda sem os dois terços dos apoios necessários, o conselho derrubou o status de Órgão Complementar do Centrinho ao subtrair do estatuto o inciso I do artigo 8º. Também na mesma reunião, o conselho incluiu um novo artigo, o 263, que torna o Centrinho uma Entidade Associada. A mudança deve facilitar a administração do complexo pela Secretaria de Saúde porque passa a funcionar como uma autarquia especial, da mesma forma que o Hospital das Clínicas de São Paulo.

Insatisfeitos com o resultado, os professores da Associação de Docentes encaminharam para a reitoria uma petição para tentar anular a desvinculação do complexo. Nele, os docentes anexaram as 16 páginas de uma reunião do Conselho que, em 2011, aprovou a exceção exclusiva aos Núcleos de Apoio no item 13.

Primeiro secretário e ex-presidente da Adusp, o professor do Instituto de Matemática e Estatística Francisco Miraglia Neto explica que os Núcleos de Apoio à pesquisa não têm o mesmo status que um hospital ou museu. “Os fatos falam por si. Não posso assegurar má-fé com a vírgula, mas incompetência certamente existiu.”

A Adusp teme que a desvinculação do Centrinho comprometa a excelência do hospital, especialmente em pesquisa, “uma das atividades-fim da universidade”. “O hospital em Bauru é um centro de referência internacional. Ele produz diretrizes sobre anomalias craniofaciais para toda América do Sul, Estados Unidos e Japão”, enumera o professor.

Embora o governo do estado tenha torcido o nariz para a desvinculação, ela está aprovada. Mesmo que não termine administrada pela Secretaria Estadual de Saúde, o HRAC pode agora ser privatizado ou assumido pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), acusada pela associação de ser usada pelo governo federal para facilitar a transferência de sua administração para as OSs (Organizações Sociais). “Ao deixar a USP, o trabalho de pesquisa no HRAC será destruído porque essa nunca foi a finalidade fundamental do sistema de saúde brasileiro.”

Encaminhada em setembro, a petição não recebeu resposta da reitoria até hoje. A Adusp espera que ela seja colocada em votação na reunião do Conselho marcada para a próxima terça-feira (9). “Se isso não acontecer ou o reitor não reconhecer nosso pedido, a Adusp vai tomar providencias judiciais.”

Além de a USP economizar cerca de 6 milhões de reais com os salários de 716 funcionários, a desvinculação do Centrinho abriu a brecha necessária para que os conselheiros também tentassem se desfazer do Hospital  Universitário (HU), responsável por mais de 20 mil atendimentos mensais na Cidade Universitária. Sem esses dois complexos, a USP esperava economizar até 450 milhões de reais por ano, dinheiro suficiente para resgatar as contas da instituição, corroída pela folha de pagamento, hoje em 105% dos 4,5 bilhões de reais do orçamento da USP em 2014.

A reportagem entrou em contato com o Conselho Universitário, segundo quem as acusações “estão sendo analisados pela Procuradoria Geral da Universidade”. Questionada, a assessoria de imprensa não informou se a Procuradoria responderia as questões enviadas por CartaCapital.

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