Sociedade

Uso recreativo de drogas e o direito à propriedade

Não há sentido pensar um modelo de sociedade em que se outorga ao Estado o direito de estabelecer regulação sobre condutas humanas que não ocasionem danos a terceiros

A Marcha da Maconha reuniu milhares em São Paulo
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A Marcha da Maconha, que acontece neste mês em várias cidades brasileiras, organizada e apoiada por organizações da sociedade civil, já entrou para o calendário nacional como o evento de maior visibilidade para a pauta da legalização do uso da maconha no Brasil – uma oportunidade de debater não só a descriminalização do consumo, mas também outras questões a ela atreladas, como as ineficazes políticas de guerra às drogas e a regulamentação do comércio.

A discussão é sempre válida, embora os argumentos em favor da descriminalização do porte para uso de substâncias entorpecentes no País, no plano utilitarista, já estejam bem consolidados. O valor gasto com a guerra às drogas no plano global é quase equivalente ao de todo o mercado de drogas no mundo, o poder do narcotráfico é crescente e não se consegue mitigar, sequer diminuir o consumo. A superlotação dos presídios e os custos do encarceramento relacionado ao tráfico, geralmente de pequenos traficantes que acabam se transformando em soldados do crime organizado, são pontos críticos. É, portanto, inevitável e urgente encontrar alternativa para tratar a questão.

Essa alternativa pode ser mais efetiva se o debate se estabelecer não apenas no âmbito meramente utilitarista, mas principalmente no campo do Direito, da Teoria do Estado e da defesa da liberdade.

Cabe ao Estado interferir na forma como cada indivíduo lida com a gestão do próprio corpo e nas suas concepções de saúde e bem-estar? Vivemos em um modelo de sociedade no qual, tanto à direita quanto à esquerda, há a pretensão de ditar caminhos a serem seguidos para que as pessoas atinjam padrões pré-estabelecidos de felicidade e bem-estar. Ora, não há sequer como definir se felicidade é algo tangível, mas se a felicidade é possível, sua condição indispensável é a liberdade.

Sem liberdade não há efetivamente possibilidade de o homem ser feliz ou de ter uma vida boa. Porém, a liberdade está sendo cada vez mais secundarizada no debate público, em relação à segurança, à saúde e a demais valores com os quais ela não concorre. Liberdade é uma condição humana essencial da vida e não deveria ser suprimida, mas sim ponderada face a outros valores também relevantes na ordem jurídica e na vida social.

A criminalização do porte para uso de drogas, além de ser uma ofensa à liberdade no campo político e filosófico, é, no plano jurídico, uma legislação inconstitucional agressiva ao direito de liberdade estabelecido na Constituição. Essa matéria, inclusive, é objeto de análise pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que, em breve, decidira sobre medida judicial que poderá declarar a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, que trata da punição a usuários.

Não há sentido pensar um modelo de sociedade em que se outorga ao Estado o direito de estabelecer regulação sobre condutas humanas que não ocasionem danos sensíveis a terceiros. Uma sociedade um pouco mais civilizada e saudável deveria descriminalizar o uso recreativo não só da maconha, mas de todas as drogas, e regulamentar seu comércio. A comercialização, por ser uma atividade que implica relações intersubjetivas, necessita de intervenção, de regulação. E não seria coerente descriminalizar o consumo pessoal sem considerar formas lícitas de obtenção de drogas.

Um dos aspectos mais espantosos do debate público sobre o tema é como articulistas e blogueiros que se reivindicam liberais defensores dos direitos de liberdade e propriedade se põem contra a descriminalização do porte para uso da maconha e outras drogas.

Em geral bufam contra qualquer ameaça de restrição estatal à propriedade do capital e de bens imobiliários, mas estimulam restrições desta natureza ao bem mais primário do qual deve ser garantida a propriedade ao homem, o seu próprio corpo.

A questão não é discutir se a maconha faz mais ou menos mal que o álcool e outras drogas para o organismo, mas deixar claro que cada um de nós é dono do próprio corpo e pode usá-lo de forma plena desde que não ocasione danos significativos a terceiros, na velha fórmula proposta por Stuart Mill. Assim se o individuo consome maconha, álcool ou heroína, isso é um problema exclusivo dele, não cabendo ao Estado querer punir como crime esta conduta especifica.

O papel do Estado em relação ao consumo de drogas deveria se limitar às medidas educativas e de reabilitação. Informar, desmistificar, pesquisar e esclarecer os riscos, estabelecer políticas de redução de danos são as ações cabíveis à atuação estatal. Restringir a liberdade do indivíduo de usufruir do próprio corpo, do qual é dono, tutelando suas escolhas em uma esfera privativa – o que é bom ou ruim, faz bem ou mal – é algo absolutamente equivocado e atrasado.

Fere os valores liberais mais comezinhos advindos do iluminismo e suas ideias. É uma volta aos tempos da escuridão do Estado de Policia de poderes absolutos sobre as pessoas. Supressão da pessoa concreta e sua singularidade ante o coletivo como ser abstrato, história que nunca terminou bem, como sabemos.

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