Sociedade

Uma vez fora do armário, não tem volta

Não ter medo de amar é o desejo mais singelo e fundamental de cidadãs e cidadãos LGBT no mundo direito

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“Amar Sem Temer.” A mensagem espalhada em cartazes na Parada do Orgulho LGBT, que encheu a Avenida Paulista no domingo 29, numa grande celebração da diversidade, é uma clara alusão ao atual contexto político brasileiro. Mas a frase vai muito além. Não ter medo de amar é o desejo mais singelo e fundamental de cidadãs e cidadãos LGBT no mundo direito.

No exato momento em que as pessoas festejavam em São Paulo, eu de longe percebi o quanto a frase fazia sentido. Na tarde de domingo, eu e um amigo usávamos o metrô em Londres quando três rapazes claramente bêbados entraram no vagão e se sentaram ao nosso lado.

Embora falassem uma língua do leste europeu, não foi preciso entender as palavras para perceber a atitude homofóbica. Em menos de um minuto, um deles virou para o nosso lado e “deu ordens” para cairmos fora, porque não queriam se sentar perto de um gay.

Farejando o perigo, temendo levar um soco na cara, meu amigo quis se levantar. Meu senso de injustiça foi maior que o medo, talvez por saber que o espaço público e as leis britânicas nos ofereciam alguma proteção. Olhei nos olhos do agressor e falei no mesmo tom que não mudaríamos de lugar, não cederíamos um centímetro e, se quisessem, eles que se levantassem.

O que se seguiu foi um festival de berros e dedos em riste. Uma vez confrontados, sob ameaça de que chamássemos a polícia e como é peculiar aos covardes, os três voltaram a gritar em sua própria língua, mascarando o discurso homofóbico que nesse instante já era percebido pelos demais passageiros. Não arredamos o pé. Por longos dez minutos, permanecemos no mesmo lugar, ao lado de quem exalava ódio contra nossa presença ali.

O episódio no metrô de uma das cidades mais liberais e desenvolvidas do mundo mostra que a homofobia, bem como a transfobia, o machismo e o racismo não possuem fronteiras, classes sociais, ideologia ou etnia.

Todos os dias nos defrontamos com situações mais ou menos absurdas, algumas extremamente sutis, mas todas carregadas de discriminação. E nossa atitude, na maior parte do tempo, tem sido a de nos levantarmos e nos retirarmos, motivados pelo medo da violência, que só no Brasil mata mais de 300 LGBTs por ano, a maioria pessoas trans, o seguimento mais vulnerável da comunidade.

A agenda dos direitos LGBT avançou rapidamente nos últimos anos, mas há muito a ser feito. Não basta mudar a lei, é preciso mudar a cultura das pessoas. A criminalização da homo e da transfobia por si só não vai acabar com o preconceito, assim como a criminalização do racismo não acabou.

Por isso é preciso falar sobre o respeito à diversidade nas escolas. A tarefa não é facil, sobretudo quando há uma bancada da Bíblia extremamente organizada, travando os avanços no Congresso e nos legislativos municipais e estaduais. Vide a recente batalha (perdida na maioria dos casos) em torno da abordagem de gênero nos Planos Municipais de Educação.

Infelizmente, a reação mais sórdida vem dos púlpitos das igrejas, da boca daqueles que, em vez de pregar o amor, só disseminam o ódio baseados em mentira. Inventaram até a tal “ideologia de gênero”, um factóide para dizer que nossa intenção é ensinar as crianças a serem homossexuais (uma paranóia que seria cômica se não fosse trágica).

O que queremos é falar sobre tolerância, respeito, machismo, porque achamos inconcebível viver numa sociedade onde LGBTs são atacados nas ruas. Onde uma garota é estuprada por 30 homens e depois é culpabilizada pelo crime de que foi vítima.

Por isso falar em “Amar Sem Temer” neste momento ganha um sentido crucial, já que esses mesmos grupos fundamentalistas agora ditam certos rumos do governo provisório de Michel Temer. É certo que eles também compuseram a base de Dilma Rousseff e barraram avanços, mas, diferentemente da gestão anterior, o que se observa no governo interino é uma agenda de retrocesso de direitos.

O ministério dos Direitos Humanos foi rebaixado, a titular da secretaria interina de mulheres é contra os direitos das mulheres, membros do governo tentam invalidar o decreto que autoriza o nome social para as pessoas trans nas repartições federais e aliados de Temer querem inviabilizar no Congresso o direito ao aborto de mulheres vítimas de estupro.

Para os conservadores, o movimento é sempre o de tornar invisíveis os LGBTs. Seja no discurso de políticos fundamentalistas ou seja na frase daquele “amigo” que diz “não ter nenhum preconceito”, mas acha “os LGBTs muito escandalosos”, ou os que veem com aquela história de “mas precisa ser tão afeminado assim?”.

O simples fato de existimos como somos, mais ou menos militantes, afeminados, trans, bi ou o que seja, é incômodo para os que não foram educados numa cultura de tolerância para a diversidade. É reflexo de uma sociedade construída a partir de valores heteronormativos, machistas e elitistas. Por isso, na primeira ocasião, querem ver os gays se levantarem e sumirem de suas vistas, querem as mulheres de volta na cozinha e os negros, na senzala.

Os que pensam assim, que se acostumem com o mundo novo. Porque toda vez que tentarem nos impedir de falar sobre questões de gênero, mais falaremos sobre gênero. Toda vez que tentarem nos tornar invisíveis, mais iremos para a rua celebrar nossa diversidade. Toda vez que nos mandarem “cair fora”, resistiremos.

Não se trata de arrogância ou de discurso de vítima. Uma vez fora do armário, não há volta. E nossa luta por uma sociedade mais igualitária, sem medo de amar, só começou.

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