Sociedade

Tudo nosso, nada nosso

Não existe educação que funcione. Por isso o “rolezinho” não é em bibliotecas. Só não vale depositar a culpa no som que é feito na favela

Só não vale depois depositada toda a culpa no som que é feito no barraquinho da favela, a maldição é o funk falando de suas roupas e carros? (na foto, o cantor MC Guime, ícone do funk ostentaçao)
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Foi duro para ela ouvir aquilo.

– Você está com eles? Então, fora!

O policial gritava e empurrava.

Camila comprou o sapato na Santa Lolla em quatro parcelas. A blusinha foi na C&A, em três parcelas. A calça foi em mais parcelas, mas uma calça da Coca-Cola vale se apertar um pouquinho por mês.

Renato ficou puto: como pode aquele policial ter chutado sua perna se, há alguns dias, o vendedor da Brooksfield o tratou tão bem naquele shopping?

Brooksfield, marca que o cantor oriundo das periferias Belo usou durante anos, fazendo assim muitos jovens da periferia a desejarem.

Quando Renato foi entrar na loja, o gerente daquele horário olhou para o vendedor mais jovem e deu um sinal: era para atender o “mano”, forma como os periféricos são apelidados pelos funcionários. Diferente dos doutores e jovens ricos que frequentam a loja e quase sempre passam horas e compram somente uma peça, os “manos” entram timidamente, são inseguros, vão direto para as camisas pólos e muitas vezes compram duas ou três peças.

Apenas dez minutos depois de entrar, Renato já está no caixa pagando duas camisas e uma bermuda. A menina do caixa parece legal quando ele diz que o pagamento é a vista e em dinheiro. Renato é acompanhado para fora da loja com o sorriso do vendedor que lhe entrega um cartão. O mesmo vendedor que também mora na periferia da Zona Leste.

Renato, que mora na Vila Calú, anda pela praça de alimentação e vai escolher onde comer seu lanche.

Dias depois, Renato foi avisado de um “rolezinho” pela internet. A mensagem veio pelo Facebook.

Um “rolezinho” foi como os jovens apelidaram uma forma de encontro em alguns lugares, coisa já feita há muitos anos por todas as classes (ou você nunca viu ou participou de um encontro na frente da faculdade?)

A diferença é que, se os universitários não puderem se encontrar na frente da faculdade, o fariam no bar; na periferia, ficar no bar é pagar para vacilar e virar número que engorda as matérias sobre chacinas.

O País há muitos anos é vendido como rico. “Estamos em ascensão”. “Tudo está melhorando”. “Todos fazem parte dessa evolução”.

Balela, mentira. A elite não está preparada para dividir seus espaços, seus feudos, sua exclusividade, mas uma coisa é certa: ela vai ter que aprender.

“Por que eles não ficam no lugar deles?”

Porque o lugar deles é ruim. Ninguém quer ficar mais desfilando de Mizuno de 1.000 reais em frente ao córrego, quem gosta de córrego é rato.

A periferia há muitos anos está defasada de algo que atraía o jovem. Não temos meio nenhum de entretenimento para alguém que hoje completa 14 anos.

A biblioteca mais próxima é um CEU da prefeitura (tem 3.000 títulos para mais de um milhão de habitantes).

A piscina pública é também no CEU (tem que cadastrar e esperar sua vaga para nadar no horário determinado pela instituição).

Um exemplo é um parquinho que fizeram aqui no Engenho Velho na Zona Sul onde moro.

A prefeitura executou a obra há duas semanas, com três gangorras feitas de pneus e correntes, dois gira-giras, e um escorregador. O parquinho nunca ficou vazio: crianças disputam espaço com jovens que, às vezes, ficam sentados horas ali, como é comum ficarem ociosos em calçadas por todas as periferias.

Jovem é jovem, não importa a classe. Quer usar roupa que o valorize, quer sair para um lugar melhor, está tão cheio de dúvida que quando olha para o espelho ainda não sabe o que é, nem o que vai ser.

No estacionamento, Carlos, advogado e classe média, escuta na rádio: “Com tanta riqueza por aí, cadê sua fração, até quando esperar?”

Ao seu lado, Renato, estudante e balconista, tido como classe baixa, escuta no rádio: “Nota de cem, nota de cem, joga os plaquê de cem”.

Em alguns minutos Carlos vai entrar no shopping tranquilamente com sua camisa Hering e sua bermuda comprada num brechó de uma amiga, enquanto Renato, com sua camisa da Abercrombie e Fitch, sua calça da Fórum, seu tênis Nike SB, seu óculos Oakley, e seu relógio Invicta, vai ser barrado na porta por ser periférico.

Da ponte pra cá, a vida nunca foi mamão e, de uns anos pra cá, vem sendo notório que tudo está mudando, todos estão tendo acesso (nem que seja em parcelas) e querem também o que o “outro lado” tem a oferecer.

Anos de exclusão, cozinhando e chegando em casa sem alimento, cuidando do transporte e não tendo como voltar para seu barraco, ensinando uma elite que lhe dá o desprezo em contrapartida. Ninguém nasceu para ser coadjuvante de ninguém, a nova geração é mais desassistida, com escolas piores, sem exemplos de vida contundentes, sem expectativa para de fato construir uma família, afinal muitos vem de uma desconstrução.

Muito barulho, porque é no quintal da elite. Enquanto era no nosso, tudo tranqüilo.

Proíbe som alto, baile funk, passeio deles no shopping, proíbe, proíbe, proíbe. Sai mais barato criar leis do que dar conhecimento.

O conhecimento é a chave, para discernir o que é melhor, desde o consumo pregado há tantos anos pelas mais competentes agências de propaganda (se esses jovens estão loucos por essas marcas, o trabalho deu certo, parabéns).

Não existe educação que funcione hoje neste país, por isso o “rolezinho” não é em bibliotecas.

Só não vale depois depositar toda a culpa no som que é feito no barraquinho da favela. A maldição é o funk falando de suas roupas e carros?

O menino do morro no palco é só a repetição de campanhas de marketing agressivas, que o fizeram ter vergonha de ser o que é, e querer se blindar de garantias de aceitação.

Mas roupa não esconde pele, olhar, postura, serão esses os quesitos para barrar nas entradas dos impérios elitistas?

A frase mais incompleta do país.

Um país de todos.

Vamos completar.

Desde que cada um fique no seu quadrado.

O caminho para a evolução nos nossos tempos não é ouvir funk carioca no pancadão, mas também não é fazer pilates trancado no seu presídio de luxo.

Tanto discurso de inclusão durante os almoços, um país para todos, globalização.

Mas na vida real balbucia a todo momento.

– Mas esse povinho demora quando entra no avião.

O acesso ao conhecimento tem de ser para todos.

– A feira literária de Parati hoje é cheia, antigamente era tão bom.

Tempos novos, novos acessos, muito ainda virá. Aposte no caos se não houver inclusão.

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