Sociedade

Três Carlos

A primeira sessão com um analista já está fechada

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Muita gente se assusta quando eu revelo três coisas que nunca fiz na vida. Não que sejam as únicas três coisas que nunca fiz nesses sessenta e tantos anos de vida, claro. Não fiz milhões de coisas. Nunca comi dobradinha, nunca saltei de paraquedas, nunca cantei num karaokê, nem nunca fui ao Vietnã, por exemplo. 

As três coisas que nunca fiz na vida e que vivo falando – quem é mais chegado – já sabe de cor e salteado, mas muita gente ainda não sabe. 

Primeiro, nunca dirigi um automóvel. Nunquinha. Sequer virei a chave do carro pra ouvir o ronco do motor. Segundo, nunca entrei numa sauna. Não sei por que, nunca coloquei os pés lá dentro, nem sei como é uma sauna. E, terceiro, nunca fui a um analista. E é dessa terceira coisa que nunca fiz na vida que vim contar aqui hoje. 

Acho que seria uma boa ir, já que tenho tantas histórias pra contar e, segundo o meu médico, uma memória de elefante. Acredito que a primeira coisa que contaria pro meu analista seria a história dos três Carlos que atormentam – não sei se é essa a palavra – o meu cérebro desde a juventude. 

O primeiro foi aquele Carlos que me fez criar um jogral na Brasília que ainda engatinhava, uma cidade que era só poeira vermelha. Foi lá, no Ginásio Caseb, que me apaixonei por esse Carlos. Ele era alto, magro, calvo, funcionário público, pai de Maria Julieta, usava terno e gravata, óculos de grau forte e era mineiro como eu. O jogral era composto de oito pessoas e um dia, com a cara e a coragem, subimos ao palco para apresentar o poema José, de autoria dele. Durante toda a minha vida comi em pratos fundos a sua poesia, até mesmo sopa de pedras no caminho saboreei. 

O segundo Carlos foi aquele que me fazia subir no terraço da Faculdade de Filosofia da UFMG, munido de paus e pedras, e disparar lá de cima aquele arsenal na cabeça dos gorilas – era assim que chamávamos aqueles militares – porque precisava me vingar daquela emboscada que aprontaram pro Carlos no centro de São Paulo, cidade que nem conhecia. 

Nunca digeri aquele sangue escorrendo da boca daquele guerrilheiro, morto de susto, de bala ou vício. 

O terceiro Carlos ficou na minha cabeça desde o dia em que vi aquela fotografia em preto e branco no Jornal do Brasil, ensinando a bela Iara Iavelberg a manipular um fuzil roubado do Exército. O Carlos que deu adeus às armas oficiais e partiu pro sertão da Bahia sonhando com um país livre. Foi lá, entre cactos e pequenos cajueiros, que ele morreu como o segundo Carlos, do mesmo susto, da mesma bala ou do mesmo vício. 

Eu era um jovem cabeludo cheio de caracóis na cabeça quando esses três Carlos faziam parte do meu dia a dia. Os meus nervos às vezes ficavam à flor da pele com aquela poesia, com aquela luta armada, amada ou não.   

O primeiro era aquele que realizava o meu sonho de escrever poesias, viver na Cidade Maravilhosa, com vista pro mar, mas encolhido dentro de um estado de espírito que era também o meu, Minas Gerais

O segundo, realizava o meu sonho de escrever cartilhas. Ele já tinha algumas prontas, só que mais didáticas, manuais de guerrilha, diários e outros contos. 

O terceiro também realizava um dos meus sonhos da juventude, deixar tudo e partir pra uma vida, meio on the road, meio easy rider. Pegar em armas, atirar, acertar e derrubar a ditadura. 

Quanto alimento para um analista! Nesses anos de Carlos sempre presentes na minha mente, curiosamente, os três foram parar, um dia, na capa da Veja. Revista de outrora, tempos de minos, pompeus, amorins, lancelottis, wernecks, mayrinks, chagas, arcos e flexas. Quando chegaram lá e foram expostos nas bancas de jornais, dois já estavam mortos e um ainda vivo, o mineiro. 

Bem, o assunto da primeira sessão com o analista já está fechado. Lá estarão os três Carlos, lado a lado e que, pensando bem, ainda existem dentro de mim. A segunda sessão, quem sabe, será a revista Veja. Mas isso é uma outra história. 

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