Sociedade
Treinamento é fundamental para lidar com o ebola, diz médico da Fiocruz
Responsável pelo caso de paciente com suspeita de ter a doença, José Cerbino afirma que desigualdade em serviços de saúde aumenta risco de contágio no Brasil
Na quarta-feira 15, Souleymane Bah, o primeiro caso de paciente com suspeita de ebola no Brasil, recebeu alta do hospital da Fiocruz, no Rio de Janeiro, após dois exames descartarem a hipótese da doença.
Ainda que não confirmada, a suspeita serviu como uma espécie de teste para o Brasil. Segundo o médico responsável pelo caso, José Cerbino, a experiência permitiu aprofundar o treinamento das equipes de saúde.
“Os equipamentos de proteção são necessários, mas não são suficientes. Se as pessoas não estiverem muito bem treinadas na utilização deles, há o risco de contaminação”, afirma Cerbino, vice-diretor de Serviços Clínicos do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI).
Para o médico, o Brasil tem uma enorme desigualdade em serviços de saúde, o que significa um maior risco de contágio em locais onde não há infraestrutura. “Toda unidade de saúde precisa estar preparada para identificar o caso e tomar as primeiras medidas”, afirma.
Nas últimas semanas, Estados Unidos e Espanha tiveram os primeiros casos de transmissão da doença fora da África. Três enfermeiras foram contaminadas ao tratar de pacientes com ebola.
O guineense Bah, de 47 anos, havia chegado ao Brasil vindo da Guiné, na África Ocidental. Ele apresentou alguns sintomas da doença e foi internado na última quinta-feira (09/10) no isolamento de uma Unidade de Pronto Atendimento, em Cascavel (PR). Na madrugada da sexta-feira, o paciente havia sido transferido para o INI, no Rio de Janeiro.
DW: Quais lições foram aprendidas com essa experiência de ter um paciente com suspeita de ebola no hospital?
José Cerbino: Uma das principais lições foi o treinamento da equipe, que é fundamental. Os equipamentos de proteção são necessários, mas não são suficientes. Se as pessoas não estiverem muito bem treinadas na utilização deles, há o risco de contaminação. É um procedimento complexo, são muitos passos que devem ser dados, de forma correta e na ordem correta. É um grande desafio, não é simples fazer essa contenção da transmissão.
DW: O que a sociedade brasileira aprendeu com o caso?
JC: A comunicação de risco, a forma de passar essas informações para a sociedade. A gente viu que houve manifestações de preconceito, então, isso precisa ser mais bem trabalhado, porque, em outras situações, podemos ter repercussões mais sérias.
DW: Quais outros benefícios essa experiência pode ter trazido para o Brasil?
JC: Acho que foi bom chamar a atenção para a possibilidade de entrada desses pacientes em qualquer lugar. Porque antes o foco estava nas unidades de referência, nas cidades turísticas, nos portos e aeroportos. E a gente viu que o caso foi identificado no interior do Paraná, em um local onde não se esperava essa situação. Então, o aprendizado é que toda unidade de saúde precisa estar preparada para identificar o caso e tomar as primeiras medidas.
DW: Como era o clima entre os funcionários de saúde, já que havia o risco de contaminação e era a primeira vez que estavam lidando com isso?
JC: Não havia medo, mas uma preocupação, sim. O que é até desejável, porque isso faz com que as pessoas fiquem mais atentas aos protocolos. Em geral, os problemas ocorrem quando as pessoas ficam muito confiantes.
DW: Estamos vendo casos de enfermeiros contaminados nos EUA e na Espanha. O senhor identificou falhas no protocolo de segurança usado no caso brasileiro?
JC: Não identificamos nenhuma falha, tudo correu bem. Existe sempre o risco, porque a gente não sabe como foi a contaminação dos profissionais nos EUA, a exposição ainda não foi descrita. E sempre há melhorias a se fazer no processo: nos tempos de entrada e saída, na disposição do espaço utilizado e na forma de armazenamento do material.
DW: Como é o protocolo de segurança adotado no Brasil?
JC: A OMS [Organização Mundial da Saúde], os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) e os Médicos Sem Fronteiras (MSF) têm, cada um deles, uma recomendação própria. O nosso protocolo foi desenvolvido internamente, com base na literatura disponível. Fizemos uma adaptação para a nossa realidade, para a área exata onde o paciente ia ficar e o tipo de material disponível. Os MSF usam um protocolo bem mais rigoroso do que o da OMS e o do CDC, e o nosso é mais próximo do método da ONG. Entram sempre três pessoas para cuidar do paciente. Há um supervisor que fica observando a colocação e a retirada dos equipamentos de proteção individual, o que é fundamental para identificar falhas. Dentro do quarto do paciente, um dos profissionais supervisiona a atividade dos outros, para evitar uma exposição.
DW: Então, cada centro de saúde tem o seu próprio protocolo?
JC: Sim, cada unidade teria que definir o seu próprio protocolo. Isso tem que ser feito em conjunto com as secretarias estadual e municipal de saúde. Mas os planos têm que ser adaptados para a realidade de cada unidade.
DW: Como isso funciona em locais que não são centros de referência, como Cascavel?
JC: A informação que tivemos é que as medidas foram corretas. Eu acho que é louvável que eles tenham identificado e classificado o caso como suspeito, terem colocado o paciente em isolamento e tido a iniciativa de notificar o caso imediatamente. Porque a gente vê em outros países erros ocorrendo dessa forma, o paciente chegando sintomático e sendo mandado para casa. Isso aumenta o tempo de exposição de outras pessoas. Por isso, eu acho que eles fizeram o melhor trabalho possível.
DW: Na sua opinião, o que o Brasil precisa fazer para combater o ebola?
JC: Aqui a infraestrutura é muito heterogênea. Há cidades e hospitais bem preparados, e outros sem nada. Então, é preciso homogeneizar isso. Todos os locais devem ter um plano bem definido e ensaiado de como conduzir uma situação como essa.
DW: É mais importante o reforço do treinamento das equipes ou a compra de materiais, no caso do Brasil?
JC: A gente verificou que o consumo dos equipamentos de proteção individual é bem alto durante uma internação. Então, é importante que exista um estoque estratégico, preparado, para caso a gente tenha um número inesperado de casos. Mas, em geral, o mais importante mesmo é a sensibilização e o treinamento das pessoas. Porque uma pessoa mal treinada com todos os equipamentos tem um risco maior que uma pessoa bem treinada com poucos equipamentos
DW: E que o Brasil deve fazer para prevenir o ebola?
JC: Este é um desafio comum a todos os países. Precisamos pensar na melhor forma de identificar precocemente os pacientes vindos dessas áreas e que desenvolvem sintomas. Era fundamental mapear onde essas pessoas estão circulando, para que se possa identificar rapidamente um indivíduo com sintomas. O controle no aeroporto, que é muito mencionado, tem eficácia questionável, porque a maioria dos pacientes vai passar assintomático. Além disso, o fato de não estar com febre não significa que a pessoa não está doente ou não está transmitindo.
Por: Marina Estarque
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