Sociedade

Crise na USP é resultado da falta de transparência

A USP sofre de um problema estrutural, o qual reside no seio do modelo e das práticas da sua gestão

Apesar de o ex-reitor e o governador de São Paulo culparem a baixa arrecadação de ICMS para a crise da USP, o problema da universidade é estrutural
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Nos últimos meses alguns atores públicos apressaram-se em afirmar que a crise da USP é conjuntural. Entre eles dou destaque ao ex-reitor da USP, atualmente membro do Conselho Superior da Fapesp, João Grandino Rodas, além do governador de São Paulo e candidato à reeleição, Geraldo Alckmin (PSDB).

Os argumentos destas lideranças políticas e acadêmicas centram-se na ideia que a crise na USP deve-se à uma relativa baixa na arrecadação do ICMS no Estado de São Paulo nos últimos tempos, relacionada diretamente com o baixo desempenho da economia nacional. Argumentação facilmente desconstruída quando visitamos o site da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo e analisamos às Estatísticas de Referência – agosto de 2014, Tabela 1.2 Estado de São Paulo: histórico da receita tributária.

Entre 2009 e 2013 o aumento médio na arrecadação deste tributo no Estado de São Paulo é da ordem de 9,8%, sendo o do último período (2012/2013) de 8,7%. O máximo que podemos inferir (vejam bem, digo inferir e não afirmar!) é que em 2014 este aumento pode ter uma tendência de estagnação, uma vez, até o mês de julho último, o Estado de São Paulo ter arrecadado 68 bilhões de reais aproximadamente, montante que aparentemente pode indicar o fim de um período auspicioso de aumento na arrecadação. Sendo até possível estimar, a partir destes números, que em 2014 a arrecadação do ICMS ficará num patamar muito próximo ao de 2013.

Importante frisar que obviamente sabemos que ao falarmos de arrecadação é sempre necessário se levar em consideração a inflação do período, e que através da exposição destes valores, simplesmente extraídos das informações disponibilizadas pela Secretaria da Fazenda em seu site, estamos somente nos referindo aos importes absolutos arrecadados pelo governo do Estado de São Paulo, sem maiores análises financeiras. Até porque aqueles atores que os citam em seus argumentos nunca realizam uma análise mais aprofundada destes dados, como também não os relacionam diretamente com aspectos importantes da realidade uspiana dos últimos anos. Como, por exemplo, o intenso processo de expansão ocorrido no ensino de graduação e de pós-graduação, que marcou a última década do ensino superior público brasileiro. Sendo assim, apontamos aqui o quão limitado é o escopo analítico das autoridades universitárias e governamentais que se apressam em apontar a origem da atual crise em elementos conjunturais da economia brasileira atual.

A fragilidade destes argumentos realmente fica-nos clara a partir do momento nos quais tais dados da arrecadação paulista ganham interpretações diametralmente opostas dentro do próprio governo paulista. Afinal nos últimos meses surgem vozes dissonantes da reitoria da USP, e do governador, vindas, nada mais nada menos, do que da própria Secretária da Fazenda do Estado de São Paulo. Enfim, apesar dos números apontarem, numa primeira e superficial análise, para o possível encerramento de um período alvissareiro de aumento arrecadatório, como afirmam o atual reitor, Marco Antonio Zago, bem como o ex-reitor Rodas, há discursos dentro do próprio governo Alckmin que não confirmam tal cenário e análises. Falas alicerçadas em interpretações que nos lembram da robustez das estruturas de arrecadação do estado de São Paulo, fato que per si garantiria, ainda para este ano de 2014, a manutenção do sentido positivo no aumento da arrecadação do ICMS vivido por esta unidade da federação, como demonstram a média do aumento do ICMS nos últimos anos e os dados de 2012/2013 já apontados aqui.

Obviamente que tal argumento ganha muita pujança quando entre seus autores destaca-se o atual Secretário da Fazenda do Estado de São Paulo, Andrea Sandro Calabi. Uma vez o secretário ter vindo a público contradizer tanto a reitoria da USP como o próprio mandatário do Palácio dos Bandeirantes. Antinomia claramente exposta, por exemplo, em artigo assinado pelo próprio Calabi publicado na Folha de S. Paulo em 28/5/2014, “Andrea Calabi: Uma Questão de Gestão”. Ou ainda em entrevista publicada no mesmo periódico no dia 5 de setembro último, “Secretário de Alckmin diz que instituições vão ter mais repasses”.

Mas o objetivo deste texto não é discutir quem está certo neste debate dentro das hostes do governo paulista (nunca esqueçamos que os reitores das universidades públicas paulistas são indicados pelo governador do Estado de SP através de lista tríplice). Nosso intento é apontar para a existência de uma crise estrutural dentro da USP, a qual reside no seio do modelo e das práticas de gestão utilizadas em nossa maior universidade há décadas. Portanto, minha intenção não é procurar se há pessoas físicas (administradores públicos) responsáveis pela situação atual da USP, apesar de entender ser fundamental a responsabilização daqueles que por ventura tenham cometido ilícitos administrativos. Já que entendo que qualquer responsabilização deva ser fruto de um processo de mudança profundo no modelo e nas práticas de gestão que estão extraordinariamente enraizados em todos os campi e unidades da Universidade de São Paulo. Com isso, a busca de culpados, neste momento, em nossa visão, fará com que a USP deixe de lado o problema principal, pois a personalização deste importante debate tirará o foco dos reais e estruturais problemas que encontramos na gestão universitária uspiana.

Para chegarmos mais próximos às causas dos reais problemas enfrentados pela USP recorro a um corriqueiro e mundano episódio vivido dentro da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP. Unidade que não coincidentemente viveu por volta de 7 meses de interdição judicial neste ano de 2014, justamente por problemas ambientais claramente causados por práticas de gestão, que por mais incrível que pareça, muito mais comuns do que se possa imaginar no universo da maior universidade latinoamericana. Afinal até hoje, setembro de 2014, a reitoria da USP afirma, em declarações oficiais às autoridades judiciais e do Ministério Público, não saber a origem de terras que compõem um criminoso aterro clandestino realizado em 2011 no campus Leste da USP.

Quando fui coordenador do curso de graduação em Gestão de Políticas Públicas na EACH/USP, pelos idos do ano de 2010 ou 2011, fui chamado pelo ex-vice diretor de minha unidade para uma conversa de trabalho, durante a qual fui repreendido, muito educadamente, devido à uma “ilegalidade” cometida por minha coordenação. Segundo meu superior hierárquico, havíamos tornado público através da internet as pautas e as atas das reuniões do colegiado de nosso curso, no qual docentes e discentes deliberam sobre questões pedagógicas e administrativas do Bacharelado em Gestão de Políticas Públicas da USP, uma vez, segundo ainda tal dirigente, este ato ser proibido pelos regimentos internos da USP, e pela legislação brasileira de modo geral.

Fiquei surpreso com tal reprimenda, afinal como coordenador de um curso de graduação numa área que interage diretamente com questões da Administração Pública, achava que pelo menos alguns princípios do Direito Administrativo eram de meu domínio, ou no mínimo de colegas que integram tal colegiado. Tanto que argumentei minha discordância daquela interpretação dada aos regimentos da USP e à legislação nacional, finalizando nossa conversa, de forma bastante amigável, posicionei-me ao afirmar que aguardava um ofício da diretoria da unidade solicitando a retirada da internet dos documentos de nosso colegiado. Obviamente, tal ofício nunca chegou à coordenação de nosso curso, deixando nossas pautas e atas mantidas na internet com acesso aberto ao público no geral.

Lembro desta minha passagem enquanto gestor dentro da USP para exemplificar um pouco da realidade que vivemos dentro da Universidade de São Paulo há bastante tempo, onde aparentemente o princípio da administração ainda é a do sigilo, e não da transparência, de seus atos. Preceito que não mais está coadunado com o nosso ordenamento legal, e, principalmente, com as aspirações legítimas da sociedade brasileira atual, algo básico para qualquer Administrador Público brasileiro sério na nossa atualidade. Ao nosso ver, portanto, a raiz de todos os problemas da USP centra-se na forma como sua a gestão é conduzida, e, principalmente, na completa inexistência de instrumentos de controle desta gestão, realizada por aqueles que assumem posições centrais na estrutura administrativa da USP. E, sim, isto nos dá pistas importantes para entender a crise financeira atual da USP.

Afinal, gestão opaca e com baixo controle interno e/ou externo somado a um enorme orçamento (mais de 4,5 bilhões de reais em 2014), ao nosso ver cria totais condições para que num determinado momento as contas passem a não mais fecharem, como parece ser o caso da USP agora em 2014 (e digo parece, pois mesmo sendo membro do CO/USP as dotações orçamentárias ainda não foram totalmente expostas nem mesmo aos seus conselheiros, pois até o momento nenhum documento sobre o orçamento da USP aponta os valores dos aportes à universidade vindos das Fundações de Apoio à Universidade – como a FUSP, por exemplo).

Nunca é demais lembrar que a gestão da USP é realizada, geralmente, por aqueles docentes com mais títulos acadêmicos e com uma longa estrada percorrida através de cargos de gestão presentes em toda a estrutura funcional desta organização relativamente complexa e grandiosa, sejam nas unidades de ensino e pesquisa como nos órgãos centrais da USP. Professores e pesquisadores que estão há bastante tempo convivendo e alimentando, portanto, este modelo de gestão arcaico, que por mais incrível que possa parecer reina soberano, sem grandes oposições, há décadas na Rua da Reitoria da Cidade Universitária, localizada no bairro do Butantã em São Paulo.

Ressaltamos ainda que estes acadêmicos que se utilizam de expedientes administrativos não mais correntes no setor público brasileiro agem assim respaldados por uma interpretação do ordenamento legal brasileiro que coloca a Autonomia Universitária como um bem supremo, que exime a Universidade de viver a realidade de outros órgãos do serviço público brasileiro. Fazendo com que até mesmo a Constituição Federal Brasileira seja muitas vezes relativizada nas decisões do cotidiano de nossa universidade. E afirmo sem sombras de dúvidas, se fosse aqui registrar episódios nos quais nossa Constituição é relativizada o espaço deste artigo não seria suficiente.

Portanto, o cenário da USP do ponto de vista da gestão pública parece-nos bastante sombrio, sendo o principal fator que determina a atual crise que vemos nos jornais diários brasileiros. Mas que apesar dos pesares, felizmente, as atividades fim da USP continuam a manter seu tradicional grau de excelência, reconhecido nacional e internacionalmente. Mas é importante dizer que, se a excelência existe, e de fato isto é incontestável, deve-se à capacidade de seus recursos humanos (docentes e funcionários técnicos administrativos) que trabalham com afinco em atividades de docência e pesquisa muitas vezes para além da gestão de nossa universidade. Pois como muito bem sabe qualquer pesquisador uspiano, muitas vezes, a burocracia de nossa gestão universitária torna-se mais fator impeditivo do que meio de fato para alcançarmos nossa excelência.

Portanto, não é demais afirmar que a excelência existe apesar do arcaísmo do modelo de gestão empregado na USP. Afirmamos ainda que a gestão em toda a USP está centrada num estranho binômio para aqueles que estão a par das mudanças que acontecem diariamente no setor público brasileiro – I) Opacidade de seus atos; II) Prepotência administrativa (sempre travestido da aura meritocrática dos títulos acadêmicos). Pois em qual organização pública brasileira na atualidade encontramos um modelo de gestão tão centralizado como na USP? Somando-se a isto ainda um grau de falta de transparência para os atos da administração pouco visto nos dias de hoje no setor público brasileiro. Afinal, principalmente após a Lei de Acesso à Informação (lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011), qual instituição pública brasileira é uma caixa preta tão grande como a nossa Universidade de São Paulo?

Esperamos sinceramente que esta análise possa vir a iluminar esta seara para a qual existem poucas críticas realmente substanciais dentro do debate que existe em torno da crise da USP, a qual desemboca numa das maiores greves de sua história (os sindicatos de funcionários e professores da USP decretaram greve há mais de 100 dias). Já que tirando as históricas e meritórias exceções de sempre, ligadas quase sempre às entidades de representação das categorias de trabalhadores da USP – ADUSP e SINTUSP – que tecem críticas apontando para a falta de democratização da gestão universitária como parte de seu rol de reivindicações há décadas.

E o movimento estudantil, para quem o tema da democratização das estruturas de poder da universidade está no centro de sua pauta reivindicatória também há décadas. Podemos afirmar, sem o menor receio de estar cometendo grandes injustiças, que dentro da alta administração da USP questões como descentralização democrática dos processos de tomada de decisão, transparência para os atos da administração, mecanismos de accountability, estruturação de instrumentos de controle democrático realmente eficientes e efetivos entre outros são temas realmente pouco tratados e seriamente debatidos até os dias de hoje.

Sem sombras de dúvida podemos dizer que esta pauta de transparência e democratização da gestão pública está presente na Administração Pública brasileira de modo geral desde ao menos a promulgação da Constituição de 88, e que nos últimos anos vem ganhando contornos bem mais claros dado a pressão da opinião pública e a consolidação do regime democrático em nosso pais com amadurecimento institucional do Estado de Direito brasileiro. Mas infelizmente na Universidade de São Paulo tal pauta sempre é tratada de maneira cosmética e pouco profunda. Arriscamos até mesmo a dizer que somente na USP persistem práticas já demonizadas em outras instituições públicas brasileiras, como por exemplo, a recusa de prestação de contas claras e periódicas de seus os atos administrativos e, principalmente, como são utilizados os recursos financeiros repassados pela sociedade paulista para o financiamento de suas atividades.

Apontamos ainda que vemos como muito preocupante que no debate público em torno da crise da USP não tenhamos atingido um grau de amadurecimento no qual realmente ocorra o questionamento necessário destas práticas arcaicas. Parece-nos termos alcançado um nível crítico grande em relação ao setor público brasileiro, com enormes e justificadas cobranças em relação aos seus atos, parecendo-nos fundamental que esta cobranças adentrem o espaço universitário. Vemos como imperioso que a sociedade brasileira cobre, e obtenha respostas claras, de sua maior universidade sobre quais os destinos de sua crise. Seja através dos meios de comunicação no geral, das próprias instituições do Estado, que deveriam interagir com mais intensidade, sem o medo de estar ferindo qualquer preceito da autonomia administrativa garantida em lei (como, por exempto, nossa Assembleia Legislativa), dos partidos políticos e de outros órgãos de representação da sociedade civil, o crucial debate público em torno destes problemas tem que acontecer e adentrar os muros da instituição. Pois é inaceitável que nossa universidade continue não conseguindo dar respostas convincentes para um problema criado por ela mesmo, pois se assim continuar, sem dúvida alguma, o adjetivo “pública” que sempre usamos quando nos referimos à USP começará em breve, se já não aconteceu, a perder completamente o sentido. Uma perda inestimável para toda a sociedade brasileira, ainda mais se pensarmos na grande colaboração que a USP vem dando ao desenvolvimento brasileiro desde a década de 30, momento histórico de sua fundação.

Fatos, sem dúvida, relativamente graves, dado esta instituição de ensino superior ser sustentada por tributos pagos pelos cidadãos paulistas, e brasileiros (pois não são só os residentes em São Paulo pagam o ICMS paulista). Portanto, se queremos entender a atual crise da USP a análise tão somente de conjuntura pouco ajudará a compreender o real problema da nossa maior universidade, dado seus maiores problemas estarem localizados em suas estruturas, como pretendemos demonstrar neste texto. Sendo premente, portanto, desconstruir imediatamente as falas da maior parte das lideranças políticas e acadêmicas presentes neste atual cenário, incluindo, como não poderia de ser, o atual reitor da USP. Aquele que vem propondo vários remédios para a crise, mas que ao meu ver não atacam a real causa de nossos problemas, uma vez até agora seus remédios propostos são sempre contra os efeitos da crise, mas nunca contras suas reais causas.

*José Renato de Campos Araújo é Professor Doutor na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) Representante dos Professores Doutores no Conselho Universitário (CO) Universidade de São Paulo

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