Sociedade

‘Tire suas próprias conclusões’

O sujeito contemporâneo sofre pela impossibilidade de certezas. E pela decepção ao ver tanta gente tirar do armário o que tem de pior

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Foi a frase que mais li/ouvi nas últimas semanas. Passada a euforia de uma notícia qualificada como “bomba”, logo os atores de uma das partes corria a público para disponibilizar a íntegra daquilo que antes foi veiculado em partes.

Escolher é tomar lado e numa delação há sopapos para todos os gostos e desgostos. O comando “control F” é a provável invenção do século (passado), mas não dá conta da realidade montada com grãos selecionados. É preciso saber de tudo e entender de tudo, é preciso ler tudo para tomar a decisão.

É preciso tirar as próprias conclusões para não depender de ninguém, e é esse o grande e contraditório imperativo dos nossos tempos. É uma ordem a uma experimentação libertária (a liberdade de interpretação sem intermediários), e uma quase contradição do termo. O imperativo que liberta também aprisiona: você só passa a ser, ou a pertencer, se tiver uma conclusão. Sobre qualquer coisa.

Ao longo das últimas décadas, psicanalistas se debruçaram sobre as mudanças nos arranjos produtivos e sociais de cada período histórico para compreender e nomear as formas de sofrimento decorrentes delas.

A revolução industrial, a divisão social do trabalho, a urbanização desenfreada e as guerras, por exemplo, fizeram explodir o número de sujeitos impacientes, irritadiços e perturbados com a velocidade das transformações e suas consequentes perdas de referências simbólicas, sobretudo religiosas, que já não davam conta de explicar o mundo e apontar caminhos.

Os conflitos ganhavam outros contornos conforme mudavam nossos modos de nos relacionar com o mundo. Pensando sobre o imperativo “Leia/Veja/Assista” e “Tire suas próprias conclusões”, começo a desconfiar que estamos diante de uma nova forma de sofrimento relacionado a um mal-estar ainda não nomeado.

Afinal, que tipo de sujeito está surgindo de nossa nova organização social? O que a vida em rede diz sobre as formas como nos relacionamos com o mundo? Que tipo de valores surgem dali? E, finalmente, que tipo de sofrimento essa vida em rede tem causado?

Vou arriscar e sair correndo, já sob o risco de percorrer um campo que não é meu: estamos vendo surgir o sujeito preso à ideia da obrigação de ter algo a dizer.

Ao longo dos séculos, essa angústia era comum aos chamados formadores de opinião e artistas, responsáveis por reinterpretar o mundo.

Hoje basta ter um celular com conexão 3G para ser chamado a opinar sobre qualquer coisa. Pensamos estar pensando mesmo quando estamos apenas terceirizando convicções ao compartilhar aquilo que não escrevemos.

É uma nova versão de um conflito descrito por Clarice Lispector a respeito da insuficiência da linguagem. Algo como: “Não só não consigo dizer o que penso como o que penso passa a ser o que digo”. Se vivesse nas redes que atribuem a ela frases que jamais disse, o “dizer” e o “pensar” teria a interlocução de um outro verbo: “compartilhar”.

Mas só isso não explica a angústia dos tempos atuais e a configuração de indivíduos atordoados não pela falta de informação, mas pelo excesso delas. Foi-se o tempo em que esperava-se a morte do ditador para relatar suas mazelas.

Com os recursos hoje disponíveis, a íntegra do relatório Kruschev já teria corrido (e concorrido com boatos sobre a participação de parentes do Kremlin em frigoríficos russos) em correntes de WhatsApp, Facebook, Twitter. Bastaria apertar o botão e baixar a íntegra daquilo que, em outros tempos, escondíamos ou deletávamos.

Os grandes ditadores do século XX teriam dificuldade em combater a pulverização das informações com livros e fogueiras. A era do culto à personalidade seria apenas um delírio se concorresse com Snowden e Assange.

Esse, me parece, ser o nó: a era da livre informação (pensando, obviamente, num modelo puro de liberdade, sem interferência de algoritmo e outros impedimentos) nos possibilitou alcançar um mundo antes inacessível e/ou disponível apenas aos sábios e doutores das leis. Eles nos filtravam as informações por meio de editoriais, discursos, imagens, sentenças; vendiam “a verdade” e entregavam, sem que desconfiássemos, fragmentos de algo maior.

As manifestações de junho de 2013 foram simbólicas da mudança de hierarquia. Quem acordava e lia os jornais ficava sabendo que a ação policial para conter os protestos havia sido pacífica, exemplar e conduzida sem transtornos. A narrativa concorria com os relatos e flagrantes gravados por qualquer manifestante com uma câmera na mão e um cassetete na cabeça.

A desconstrução da narrativa oficial, e do papel dos velhos formadores de opinião como detentores do monopólio da narrativa oficial, fez com que estes se curvassem aos primeiros. O risco era perder a própria essência do ofício. A partir daí, concorrer ou se aliar aos fatos, e com quem passava a narrar os fatos em fóruns paralelos e de alcance similar, ou maior, era um cálculo entre o bom senso e o próprio enterro.

O mesmo se pode dizer da narrativa sobre o virtual colapso do governo Dilma. Nos últimos dias, nos acostumamos a ler primeiro os “furos”, os pequenos trechos selecionados e divulgados a conta-gotas sobre um emaranhado confuso. Depois, surgem os convites para ler ou assistir à íntegra de vídeo, do depoimentos e das gravações para tirarmos as próprias conclusões.

Essa é a boa e a má notícia contida no imperativo “veja você mesmo”. A boa: você não depende de ninguém além do seu servidor de internet; a má: agora é com você.

É esse convite a pensar por si, e a falar a respeito, e a fugir de conclusões já testadas e não provadas, que tem determinando nossos sofrimentos e nossas angústias de uns tempos pra cá. O exercício é, por natureza, a consolidação de um desamparo: não temos mais ninguém (ou não deveríamos ter) para pensar e dizer por nós. E, por mais que tentemos, não é fácil chegar a qualquer conclusão quando a realidade, crua e desajustada, se apresenta como uma sequência de bifurcações e de respostas falhas.

De todas, a principal bifurcação talvez seja o papel que assumimos na História. Um é a reafirmação deste desamparo. Equivale a aceitar nossos limites, nossas dúvidas, nossa desorientação; é um exercício duro, mas libertador: a partir dele, passamos a gerenciar nossos próprios afetos, deixando assim de acreditar e esperar por soluções divinas. Deixamos também de nos decepcionar com os gerentes de nossas contas ideológicas.

O outro caminho possível é o que me parece estar se sobressaindo como uma reação: o susto com aquilo que não é espelho nos leva à negação não apenas de uma realidade, porque ela em si é entrecortada, mas de um imperativo contemporâneo.

Esse imperativo tem jogado por terra a fragilidade do terreno sobre o qual assentamos nossos afetos.

Nesse terreno agora solapado, estávamos acostumados a nos comunicar com o mundo por meio de intermediários. Sempre havia alguém que falasse por nós. A começar pelo padre.

Fazendo um paralelo, estamos saindo de décadas de vivências atrofiadas, confinadas entre apartamentos, propagandas e gôndolas de supermercado. De uma ponta a outra, a crueldade inerente à própria sobrevivência era camuflada com cores, temperos e embalagens; aprendemos a consumir alimentos sem ver, sentir ou pensar nos caminhos até o nosso prato.

Por isso atacamos o apresentador de TV que na semana passada matou uma ovelha ao vivo: ele nos permitiu visualizar uma realidade que não queremos. Ele substituiu a imagem de ovelhas, porquinhos e franguinhos felizes das embalagens e das propagandas pela dureza do sangue e das vísceras.

A saída abrupta, pela imagem, de uma zona de conforto nos leva a lamentar por não termos quatro braços para fechar os olhos e as orelhas diante da verdade pouco comercializável. Mas não tampa nossas bocas.

É mais ou menos isso que tem elevado a patamares ainda desconhecidos as angústias dos tempos atuais. As pessoas estão falando o tempo todo. Já não recriminam as próprias pulsões. Já não explodem com elas por dentro. Já não desenvolvem transtornos em troca de silêncio. Pelo contrário. Elas falam. Elas são impelidas a falar. Elas se revelam.

E o que revelam não são a imagem que guardávamos delas: cidadãos de bem, simpáticos e bem intencionados, que vão à missa e passam as tardes jogando milho aos pombos. Não: esse sujeito tem manifestado nas redes sua ode à guerra, à morte, à violência, à tortura, à atrocidade com os corpos de quem não reconhecem como humanos, mas como “inimigos” – da pátria, de Deus, do bem, etc. E os que leem na dor lida sentem mal.

A fala é o discurso daquilo que o inconsciente ainda não reconhece. Ela tem revelado sujeitos desolados, desorientados e em busca de alguém que o ampare, organize, reordene o caos e devolva a sensação de pertencimento. Por isso, na contramão de um imperativo em si duro e angustiante (pensar por si, sem intermediários), se esforça para adaptar o corpo adulto num berço de criança.

Na falta do que fazer, sentir ou pensar quando descobrem que os pais, os pastores, os políticos, os policiais e os juízes são humanos, e portanto passíveis e/ou convicções, muitos preferem ignorar suas contradições e projetar a eles um lugar sagrado, protegido do erro e da dúvida. É uma forma de buscar abrigo e retomar a crença em algo que lhe foi tirado. A sensação pode ser reconfortante, mas ela é falsa e produz outros tipos de discursos e transtornos, reverberados em forma de fanatismo e certezas absolutas que não sobrevivem ao confronto com a amplidão da realidade.

Quem olha de fora pode imaginar que a multidão, enfurecida, está fazendo a revolução. Ela, na verdade, pede socorro e abrigo a uma ideia que não se encaixa nesse mundo de vísceras expostas. No fim das contas, atuam como cães que latem e correm atrás dos carros mas não tem ideia do que fazer se estes forem alcançados.

Pouco importa: é preferível acreditar na salvação e entregar nossos afetos a um Deus que, na versão 2.0, busca um rosto que dê forma à própria grandeza: o policial implacável, o juiz incorruptível, o candidato do povo ou qualquer um que nos ofereça qualquer amparo. Assim construímos ídolos com os pés de barro. Antes até poderíamos ignorar esse detalhe ao selecionar um ângulo da foto; hoje ele está exposto e passível ao crivo das praças públicas conectadas.

Parte do delírio que temos visto nas ruas vem desse desajuste. Diante de um mundo que manda ampliar as possibilidades, fechamos as janelas e as fronteiras como quem fecha os olhos para não ver o sangue do que nos será servido à mesa.

Difícil, portanto, não é falar, mas pensar fora da caixa. O sujeito que pensa por si é um sujeito que sofre pela impossibilidade de certezas. E pela decepção ao ver tanta gente tirando do armário o que tinha de pior.

Isso possivelmente tem reforçado nossa sensação de isolamento nos tempos atuais – justamente quando as conexões são mais fáceis e acessíveis. Pensar por si equivale a confiar apenas em nossos julgamentos e mais ninguém.

As conexões com um mundo que se expõe e se oferece nos revelam o que não queremos ver. Acentuam nossas misérias e dissolvem os laços de solidariedade dos tempos em que andávamos em grupo e unidos por comungar a mesma crença.

A vida em rede nos conectou a um conjunto de indivíduos e ampliou a ideia de diversidade, mas deixou como consequência um recado: você é responsável por construir os próprios filtros. Há quem sofra tentando compreender este mundo e transformá-lo num lugar de acolhimento. Há quem prefira fechar os olhos. E destruir quem surja à sua porta (ou na timeline) lembrando que o estágio atual do desenvolvimento humano não comporta as meias-verdades das frases-feitas.

O nome dessa fratura é uma palavra em aberto.

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