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Terrorismo doméstico

A radicalização política fermenta a onda de ataques em escolas brasileiras

Horror. O adolescente de 16 anos usou as armas do pai, um policial, para abater as vítimas, escolhidas de forma aleatória - Imagem: Kadija Fernandes/AFP e Redes sociais
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De uniforme camuflado, máscara com sorriso de caveira, colete à prova de balas e coturno, o soldado parecia preparado para uma missão na selva, mas seus alvos estavam, na verdade, em edificações de Aracruz, no litoral capixaba. Com o auxílio de um alicate especial, usado na construção civil para cortar vergalhões de aço, o combatente não teve dificuldade de destruir o cadeado de um portão na entrada dos fundos da Escola Estadual Primo Bitti, avançar cerca de 20 metros e abater os primeiros inimigos, surpreendidos na sala dos professores da instituição. Foram dezenas de disparos com uma pistola semiautomática e um revólver de aço inox de cano longo, calibre 38. Experiente, o atirador chegou a recuar apenas para municiar novamente as armas e retomar os disparos.

Ao se retirar do campo de batalha, o lobo solitário assumiu a direção de um carro Renault Duster e acelerou para concluir a segunda etapa do plano, preparado ao longo de dois anos. Minutos depois, ele chegaria ao segundo alvo, o Centro Educacional Praia de Coqueiral, uma escola particular distante pouco mais de 1 quilômetro do palco do primeiro ataque. Desta vez, o combatente não precisou superar qualquer barreira física. Teve liberdade para perambular pelos corredores com o reluzente revólver em punho, acionado toda vez que identificava um inimigo a ser neutralizado. A segunda incursão durou exato 1min04seg, conforme o relógio da câmera de segurança afixada na entrada. Foi o tempo necessário para cruzar o portão azul sem tranca, executar a missão e retornar ao veículo de fuga.

As duas investidas duraram cerca de dez minutos, das 9h40 às 9h50 da sexta-feira 25. Na escola estadual, oito pessoas foram baleadas e duas morreram antes de receberem socorro: a professora de Artes Maria da Penha Banhos, de 48 anos, mãe de três filhos, e Cybelle Passos Bezerra Lara, de 45 anos, que ministrava aulas de Matemática e, dias antes, havia recebido um prêmio por boas práticas na educação das mãos do governador Renato Casagrande, do PSB. Socorrida, a professora de Sociologia Flávia Amoss Merçon Leonardo, de 38 anos, não resistiu aos ferimentos e faleceu no dia seguinte. No colégio particular, o atirador fez outras três vítimas. Aluna do 6º ano do Ensino Fundamental, Selena Sagrillo, de 12 anos, morreu no local. Na terça-feira 29, duas professoras, de 51 e 37 anos, seguiam internadas na UTI do Hospital Estadual Dr. Jayme dos Santos Neves – a mais jovem estava entubada. Já no Hospital Infantil de Vitória, uma menina de 14 anos permanecia em estado grave, com uma bala alojada no crânio.

Portando uma braçadeira com a suástica nazista, o atirador de Aracruz provocou quatro mortes. Três vítimas permanecem na UTI, em estado grave

A polícia capixaba localizou o atirador no mesmo dia dos ataques. Embora as placas do veículo utilizado na fuga estivessem cobertas, não foi difícil rastrear o trajeto do automóvel dourado e com vidros escurecidos, levando os agentes a uma casa de veraneio no bairro de Coqueiral. O bárbaro crime é obra de um adolescente de 16 anos, que utilizou as armas do pai, um tenente da Polícia Militar do Espírito Santo, para executar o plano macabro. Além da pistola Glock pertencente à corporação e do revólver particular, legalmente registrado, foram apreendidos uniformes militares, farta munição e uma série de itens relacionados ao nazismo, como a braçadeira vermelha com suástica usada pelo atirador nos ataques às escolas.

A despeito da coleção de materiais de propaganda nazista encontradas nos pertences do garoto, o pai relatou, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, ter se surpreendido com o crime cometido pelo filho. Segundo o tenente da PM, que falou na condição de anonimato, ele encontrou o adolescente por volta das 11 horas na residência. Depois de fazer uma refeição, reuniu a família para um passeio a um local próximo, chamado Mar Azul. “Nós almoçamos, eu, minha esposa e ele. Ele almoçou tranquilamente. Quando a gente chegou em Mar Azul, depois de uns cinco ou dez minutos, uma viatura da Polícia Militar chegou e conversou comigo. Falou que já tinha todas as suspeitas de que seria o X, devido ao carro que ele utilizou. Era outro carro meu, que eu tinha deixado na garagem. E, quando cheguei em casa, o carro estava na garagem, tudo certinho.”

O policial concedeu diversas entrevistas à mídia, sempre com a identidade preservada. Desde o ataque do filho, justifica, passou a receber ameaças nas redes sociais. Foi o pai quem extraiu a primeira confissão do atirador, ainda em casa. O adolescente afirmou ter realizado o atentado por ser vítima de bullying na ­Primo Bitti, onde estudou até junho, quando foi transferido a pedido da família. Nem o pai está convencido da explicação. “Não foi nada provado (a situação de bullying), mas ele relatou isso. Foi antes da pandemia mais ou menos. Depois disso, a gente percebeu, sim, uma transformação comportamental nele. A gente viu que ficou uma pessoa mais introvertida e ele era bastante extrovertido. Era muito risonho, conversador, e ele se fechou, a partir do final de 2019”, relata. “Devido a esse isolamento, começou a procurar interação nos jogos. A rede social que ele mais usava era o YouTube, com os vídeos. Ele gostava muito do tema da Segunda Guerra Mundial. Não sei como aflorou esse gosto nele.”

Tragédias. Em 2021, um atirador matou cinco em uma escola infantil do município catarinense de Saudades. Em 2019, dois jovens fizeram oito vítimas em Suzano (SP) – Imagem: Rogério Gomes/Brazil Photo Press/AFP e Willian Ricardo/iShoot/Folhapress

Repetidas vezes, o policial militar pediu perdão às vítimas e seus familiares. E fez questão de destacar que sua declaração não faz parte de uma estratégia de defesa. “Tenho noção que vou responder por omissão de cautela, que ocorre quando você se omite dos cuidados da arma sob sua cautela e alguém utiliza de forma indevida. Foi o que aconteceu com a arma da corporação”, admite. “Não quero livrar minha cara, não. Vou ser punido. Não vou ficar inventando defesa mirabolante com advogado, não. Assim como quero que meu filho seja punido dentro dos rigores da lei.”

O envolvimento do tenente no episódio parece, porém, extrapolar muito a questão da falta de zelo com as suas armas. Investigadores da Polícia Civil capixaba estranham a destreza do rapaz de 16 anos com armas de fogo, habilidade que não pode ser desenvolvida apenas por aulas na internet, como alega o adolescente. O atirador dispunha ainda de equipamentos táticos, como colete balístico e coldre para carregar várias armas e munições. Não bastasse, o jovem sabia dirigir o veí­culo da família e colecionava itens nazistas. O próprio pai chegou a publicar nas redes sociais uma foto da capa do livro Mein Kampf (Minha Luta, em tradução livre), escrito por Adolf Hitler. Agora, minimiza o episódio. “Tinha interesse em entender a mente do Hitler. Até comecei o livro, mas nem concluí. Parei para ler um outro que achei mais importante. Inclusive, não gostei do livro. Achei que ele ia falar mais das ideias dele, mas estava fazendo uma narrativa histórica de quando começou o movimento de revolta na Alemanha. Achei até um livro bobo.”

Enquanto o pai tenta convencer a todos que leu o livro de Hitler, mas não tragou – e acrescenta não ser “nem bolsonarista nem lulista” –, o delegado-geral da Polícia Civil no Espírito Santo, José Darcy Arruda, pretende investigar se o adolescente mantinha contato com grupos extremistas e se chegou a frequentar clubes de tiro, para aperfeiçoar a sua técnica. “Ele tinha conhecimento para usar armamento, para fazer ‘entrada tática’. Usou até um equipamento que nós usamos, um alicate enorme”, observa. “A investigação é que vai dizer como ele, com 16 anos, tinha tanta habilidade com armas. E como ele conseguiu carregar e recarregar (a pistola)”, emenda o governador Casagrande. “Temos acesso ao seu telefone e aos seus computadores. Talvez ele tivesse algum vínculo com algum grupo de fora, neonazista, neofascista. A investigação é que vai dizer.”

De 2019 a 2022, foram ao menos 11 atentados em escolas. No período, Bolsonaro editou mais de 30 decretos e normas para facilitar o acesso a armas de fogo no País

De 2019 a 2022, o Brasil testemunhou ao menos 11 atentados em escolas, seis deles com armas de fogo. Outros cinco foram realizados com bombas caseiras, facas e outras armas não convencionais. Em outubro, um adolescente de 15 anos foi apreendido por atirar em três colegas da Escola Estadual Professora Carmosina Ferreira Gomes, em Sobral, a 240 quilômetros de Fortaleza. Uma das vítimas foi atingida na cabeça. Em setembro, um rapaz de 14 anos invadiu uma escola e matou uma aluna no município baiano de Barreiras. Em maio, três estudantes foram esfaqueados em uma escola municipal na Ilha do Governador, Zona Norte do Rio. No ano anterior, um jovem de 18 anos matou cinco pessoas e feriu outras duas após invadir uma escola infantil no município catarinense de Saudades. Em março de 2019, dois ex-alunos invadiram a Escola Estadual Professor Raul Brasil, em Suzano, Região Metropolitana de São Paulo, e mataram cinco alunos e duas funcionárias, além do tio de um dos atiradores. Enquanto um atirava, o comparsa desferia golpes de machadinha nas vítimas tombadas pelo chão.

São apenas alguns exemplos, os casos se sucedem, com maior ou menor violência. Recentemente, duas escolas públicas da cidade mineira de Contagem foram vandalizadas durante a madrugada. As instituições amanheceram, na terça-feira 29, quatro dias após o massacre de Aracruz, com pichações de suásticas e das palavras “Hitler” e “bully”. Janelas e cadeiras foram quebradas. Desde o início de seu governo, Bolsonaro editou 19 decretos, 17 portarias, duas resoluções e três instruções normativas para flexibilizar as regras de acesso a armas de fogo e munições. Na avaliação do advogado Ariel de Castro Alves, presidente do grupo Tortura Nunca Mais e integrante do grupo de trabalho de direitos humanos da equipe de transição de Lula, é evidente que “o ódio, a intolerância, o armamentismo e a violência impulsionada pelo bolsonarismo têm influência nesses casos”.

O especialista pondera, porém, que outros fatores podem ter sido determinantes para a onda de ataques a escolas, como a negligência do Poder ­Público no tratamento de transtornos mentais. “A pandemia agravou os problemas de ­saúde mental, gerando mais situações de ­depressão e ansiedade”, afirma ­Castro, que integrou o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente há alguns anos. Para prevenir a repetição dessas tragédias, o advogado sugere uma série de iniciativas: “As escolas precisam ter matérias de educação em direitos humanos, ter equipes técnicas com psicólogos e assistentes sociais e ter professores mediadores, para que esses profissionais atuem na prevenção de violências”.

O problema não está circunscrito às instituições públicas de ensino. Em Porto Alegre, o Ministério Público Federal está preocupado com a escalada de denúncias de xenofobia e intolerância política em escolas particulares. No Colégio Israelita Brasileiro, alunos chegaram a gravar vídeos com ataques a nordestinos após as eleições. Aos risos, um deles lamenta que os eleitores de Lula no Nordeste tenham desperdiçado a “oportunidade de ser gente” com os empregos supostamente oferecidos por Bolsonaro. Outro adolescente começa a xingar: “Todo nordestino deveria tomar no c*”. Quando o grupo é alertado para ter “cuidado com o que fala”, uma aluna debocha: “Vão mostrar para quem? Para os professores que fazem greve a cada duas semanas no colégio público deles?”

Imagem: Jefferson Rudy/Ag.Senado

“Bolsonaro chama os sem-terra de terroristas, mas quem protagoniza os casos de terrorismo interno são os grupos de extrema-direita”, alerta Renato Sérgio Lima

No tradicional Colégio Farroupilha, uma aluna bolsista do terceiro ano do Ensino Médio foi insultada em um grupo de WhatsApp da turma, após enviar uma mensagem celebrando a vitória do líder petista. Chamada de “chinela” e “nojenta”, a vítima ainda foi exposta a comentários inacreditáveis. “Vamos cortar tua bolsa”, escreveu um colega. “Quando não conseguir emprego, não vai ser eu quem vai fazer caridade e ser tua patroa”, emendou outra. A direção da escola informa ter punido os alunos pelas “condutas inaceitáveis”, mas não deu detalhes sobre o tipo de sanção.

Enrico Rodrigues de Freitas, titular da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão no MPF gaúcho, lamenta a banalização dos discursos de ódio e intolerância. “A liberdade de expressão, princípio fundamental do Estado, não se constitui em direito absoluto, estando limitada quando veicular discursos que ofendam a dignidade da pessoa humana.”

Uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, realizada em parceria com a Rede de Ação Política pela Sustentabilidade, alertou para o problema da radicalização política antes mesmo das eleições. Dos 2,1 mil entrevistados na primeira quinzena de agosto, 67,5% diziam ter medo de agressões físicas em razão de sua escolha política ou partidária. E 3,2% relataram ter sofrido ameaças por motivos políticos no mês anterior. Se extrapolada a amostra da pesquisa para o conjunto da sociedade, ao menos 5,3 milhões de brasileiros foram vítimas de intolerância política nos meses que antecederam as eleições. Apesar da redução do índice de propensão a posições autoritárias em relação ao levantamento anterior, 62% dos brasileiros concordam com a afirmação de que “a maioria de nossos problemas sociais estaria resolvida se pudéssemos nos livrar das pessoas imorais, dos marginais e dos pervertidos”. Espantosos 16% entendem que “os homossexuais são quase criminosos e deveriam receber um castigo severo”.

“A intolerância e a violência política ganharam contornos dramáticos no Brasil, e as escolas não estão imunes a esse processo”, observa o sociólogo Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum. “A radicalização político-ideológica tem sido responsável pela eclosão de numerosos atos de violência que poderíamos classificar como ‘terrorismo doméstico’, tomando emprestada uma expressão muito utilizada nos EUA. É curioso, porque Bolsonaro chama os militantes do MST de terroristas, mas quem, de fato, protagoniza os episódios de terrorismo interno são os grupos de extrema-direita, que sempre estiveram a seu lado. A política de descontrole das armas só alimenta essa turma e favorece a atuação dos lobos solitários.” •


*Colaborou René Ruschel.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1237 DE CARTACAPITAL, EM 7 DE DEZEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Terrorismo doméstico”

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