Justiça

Território e Proibição: guerra às drogas ou guerra aos pretos e pobres

É preciso romper com ciclos de remoções, demolições e intervenções policiais cotidianas que violam diversos direitos humanos.

A "nova Cracolândia" agora está concentrada na Praça Princesa Isabel, duas quadras do antigo local
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Nas cidades latinoamericanas, desde os anos 1990, políticas urbanísticas e de segurança pública constituem verdadeiros perímetros de intervenção excepcionalizada nas cidades. Entre demarcações territoriais e aparatos cultural-midiáticos, construiu-se um entrelaçamento entre drogas, raça e território, demilitando – em áreas populares em regiões centrais, favelas e comunidades e/ou nas quebradas e periferias – as fronteiras que separam o legal do ilegal do ponto de vista urbanístico, mas também do ponto de vista moral. 

Este entrelaçamento opera na economia política das cidades de forma a definir zonas obscuras, permitindo a implantação de ”excepcionalidades”, tanto para a ação do Estado  como para os mercados que ali se instalam. Do mesmo modo que, nestes perímetros, mercados ilícitos encontram licença para operar, o aparato estatal também arma ali um modus operandi “paralelo”.

Historicamente, o uso de substâncias psicoativas possui diferentes funções e significados conforme seu papel em cada espaço geográfico-cultural.

Contudo, acordos e proibições globais em relação às substâncias psicoativas são recentes na história da humanidade, e estiveram ao longo deste percurso entrelaçados a estratégias geopolíticas de controle dos territórios. 

Liderada pelos interesses geopolíticos dos EUA, houve, durante o século 20, uma pactuação global em torno de uma política de proibição às mais variadas substâncias no âmbito internacional. Os EUA passaram, assim, a hegemonizar globalmente o discurso proibicionista, principalmente após o ‘esfriamento’ da Guerra Fria nos anos 1980, quando foi necessário definir outro inimigo, para além do comunismo, que justificasse intervenções políticas e geográficas. Deflagrou-se assim a campanha de caça e extermínio denominada de ‘Guerra às Drogas’. 

No Brasil, a primeira restrição oficial de uma substância é de 1827, com a adoção de uma normativa nacional contra o uso de álcool. Pouco tempo depois, a maconha foi criminalizada pelo Código de Posturas Municipal do Rio de Janeiro em 1830. Vale ressaltar que este ato teve um caráter claramente racista, visando reprimir aglomerações de escravos, além de demonizar as culturas africanas que faziam uso da substância.

O comércio e consumo de drogas declaradas ilícitas trazem consigo o atravessamento da lei, que por sua vez implica nas altíssimas rentabilidades do negócio em função da clandestinidade e do risco envolvidos. Desta forma, o proibicionismo atua de forma pendular entre a violência das ações repressivas e os benefícios atrelados aos interesses políticos e econômicos ligados à ‘guerra às drogas’. 

A contraposição entre a cidade “formal”, produzida no interior das normas, e os territórios populares, marca a paisagem sociopolítica das cidades brasileiras. Embora “ílegais”, favelas e ocupações tornaram-se, sobretudo a partir dos anos 1980, objeto de investimentos por parte de governos. Entretanto, o forte estigma se mantém nestes locais, de tal maneira que o “favelado” é imediatamente associado a “marginal”. Finalmente, trata-se também de territórios racializados: favelas, periferias e quebradas nas metrópoles brasileiras são desproporcionalmente habitadas por não brancos. 

Na década de 1980, processos de reestruturação produtiva e outras mudanças no cenário global incidem em baixo crescimento econômico e aumento nos índices de desemprego e pobreza no país, especialmente nas grandes cidades que se industrializaram no ciclo anterior. Encontrar outros modos de renda e sobrevivência se tornaram, desta maneira, imperativos ainda maiores na vida da maioria das famílias de baixa renda. Este período coincide com a escalada do mercado internacional de cocaína, tornando o tráfico de drogas uma alternativa perfeitamente viável e enraizando a economia ilícita das drogas nos territórios populares . 

O aumento da violência e do tráfico teve como resposta intervenções repressivas do Estado, e, assim, os anos 1990 marcaram a instauração de intervenções territoriais do Estado em lugares de consumo e comércio de substâncias. Esta combinação colocou a população moradora nestes territórios em condição de dupla marginalização, seja por participar ativamente em processos de varejo ou consumo, ou indiretamente por habitar os territórios onde esta dinâmica se instalou.

A condição “marginal” também funciona como justificativa para processos de reestruturação territorial, como por exemplo a região da Cracolândia, situada no bairro Campos Elíseos, no centro de São Paulo. A territorialização do comércio e do consumo de crack opera no sentido de conferir sentido a projetos urbanos de “revitalização”, ou seja, de não reconhecimento da existência de vidas ali. Tais projetos se apoiam em ciclos permanentes de remoções, demolições e intervenções policiais cotidianas que violam diversos direitos humanos. Assim, o território é marcado por grandes operações repressivas neste início do século 21. 

A padronização de planejamentos urbanos, integrada ao mercado de ativos financeiros, captura os territórios marcados pelas políticas de drogas proibicionistas para remodelação estética, ou urbanização cosmética, abrindo frentes de expansão imobiliária. Assim, os espaços que sofrem as consequências das políticas de drogas tornam-se palco de grandes transformações, usando os projetos urbanísticos de ‘requalificação’, ‘renovação’ ou ‘pacificação’ urbana para embasar a validação pública e justificar a violência do Estado. O fluxo do capital negocia com o fluxo da ‘cracolândia’, encarcerando pessoas e desconstituindo territórios.

 Artigo inspirado em texto dos autores para o projeto Drogas: quanto custa proibir

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