Sociedade
Terra vermelha
No apagar das luzes do governo Bolsonaro, milícias de fazendeiros intensificam os ataques contra os kaiowá


“Foi um ataque de jagunço”, relata um indígena diante da câmera de celular, enquanto recolhe em um copo plástico descartável cartuchos de balas calibre 38 espalhados chão. De acordo com um vídeo divulgado nas redes sociais pela Associação dos Povos Indígenas do Brasil, conhecida pela sigla Apib, a ofensiva ocorreu no sábado 16, no território Kurupi, em Naviraí, município com pouco mais de 50 mil habitantes no interior de Mato Grosso do Sul, distante 370 quilômetros de Campo Grande. Há tempos a associação Aty Guasu alerta que a tekoha, como os guarani-kaiowá chamam a terra de seus ancestrais, é assediada por pistoleiros e policiais. Felizmente, desta vez, não houve registro de mortos ou feridos.
O atentado em Naviraí acontece, porém, dois dias após o assassinato de Márcio Rosa Moreira, de 40 anos, vítima de emboscada em Amambai, município próximo da fronteira com o Paraguai. Ele era uma das principais lideranças da etnia que disputa a posse de terras na região. Em 24 de junho, a mesma cidade foi palco de violenta operação conduzida pelo Batalhão de Choque da Polícia Militar em uma pequena área em litígio, a Fazenda Borda da Mata, que resultou em uma dezena de feridos e várias detenções. Vitor Fernandes, de 42 anos, acabou atingido por três disparos de arma de fogo. O kaiowá foi socorrido, mas chegou sem vida ao Hospital Regional de Amambai. As cenas de faroeste foram gravadas por celulares, usados pelos indígenas para denunciar os recorrentes ataques.
Os conflitos fundiários em Mato Grosso do Sul arrastam-se há décadas. Atualmente, cerca de 55 mil indígenas, das etnias nhandeva e kaiowá, estão confinados em 32 áreas isoladas, que perfazem menos de 50 mil hectares – o rebanho bovino do estado tem mais espaço para pastar. A maior parte dessa população vive em aldeias superlotadas, demarcadas pelo antigo Serviço de Proteção ao Índio ainda nos anos 1920, sem condições mínimas para subsistir com o seu modo de vida tradicional.
Há anos o estado lidera o ranking de assassinatos de indígenas no País
Diante da omissão estatal no reconhecimento e demarcação de terras, a violência campeia. De acordo com o último relatório divulgado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o Mato Grosso do Sul teve o maior número de indivíduos assassinados em 2019. De um total de 113 homicídios, 40 ocorreram no estado. Em 14 anos, foram registrados ainda 645 suicídios, uma morte a cada 8 dias, revelam dados oficiais do Distrito Sanitário Especial Indígena. A aferição dos casos de violência ocorridos em 2020 e 2021 acabou prejudicada em razão da pandemia, mas o Cimi promete disponibilizar as informações ainda neste semestre. Espera-se um aumento acentuado do número de homicídios, em decorrência da formação de milícias de fazendeiros que se aproveitam da omissão do governo Bolsonaro em relação ao tema. Em cumprimento a uma promessa de campanha, o ex-capitão não demarcou um único centímetro de terra indígena desde que assumiu o poder, em 1º de janeiro de 2019.
Após a desastrosa operação da PM em Amambai, o secretário estadual de Segurança Pública e Justiça, Antônio Carlos Videira, negou que a corporação estivesse promovendo reintegração de posse à revelia da Justiça. Segundo ele, a incursão policial ocorreu após reclamações das próprias lideranças indígenas da aldeia, que teriam denunciado a presença de invasores, ligados ao narcotráfico, para tentar “destituir a atual liderança devidamente eleita”. Segundo ele, os intrusos seriam “indígenas que trabalham em roças de maconha no Paraguai”. O Batalhão de Choque estaria ali para coibir crimes comuns, e não intervir na disputa fundiária.
Bolsonaro não demarcou um único centímetro de terra indígena durante o seu governo – Imagem: Sérgio Lima/AFP
Um relatório do Observatório de Justiça Criminal da Apib contesta, porém, as afirmações de Videira, a começar pela correlação de forças. Segundo o documento enviado a CartaCapital, cerca de 65 PMs fortemente armados participaram da operação contra 30 índios, com o suporte de 16 viaturas e um helicóptero. Como o efetivo da PM no município é pequeno, certamente houve o deslocamento de recursos humanos e materiais de outras localidades. Tal fato, avalia a entidade, não se daria ao acaso. “Precisaria de um impulso oficial dentro do funcionamento da estrutura da secretaria.” O documento conclui que a PM foi utilizada para proteger o território da fazenda. “No sistema jurídico brasileiro, o monopólio para o uso da violência é estatal e o seu manejo legítimo, em casos que envolvam conflito de posse ou propriedade, requer uma ordem emanada por um magistrado que decide sobre a controvérsia jurídica. No caso em questão, embora haja uma ação em trâmite na Justiça Federal, não havia autorização judicial para qualquer tipo de reintegração.”
O juiz Thales Braghini Leão, da Justiça Federal da 3ª Região, indeferiu o pedido de medida de urgência para o Interdito Proibitório requerido pelos proprietários da Fazenda Borda da Mata. Segundo os requerentes, a propriedade foi adquirida “regularmente e nunca houve qualquer manifestação relativa à disputa por direitos indígenas ou demarcação em relação ao território”. Mesmo assim, sustenta o pedido, teria ocorrido a “invasão” por parte dos kaiowá. Uma das justificativas pelo pedido de urgência deve-se a uma “iminente colheita da produção de milho no local, que, se não realizada, poderá causar imenso prejuízo material”.
Na sentença, o magistrado reconhece a legitimidade da reivindicação dos kaiowá, algo a ser averiguado pelos órgãos competentes. “Não se pode ignorar a existência de elementos que indicam a possibilidade de estarem eles (os indígenas) litigando com seus próprios meios por aquilo que o nosso sistema constitucional prometeu a eles”, escreveu Leão. O juiz destacou ainda a ilegalidade da ação da PM: “A Polícia Federal é a autoridade policial judiciária nesse tipo de situação, de modo que não se pode admitir que as forças locais atuem sem a sua liderança ou sem ordens judiciais”.
Uma reintegração de posse à revelia da Justiça resultou na morte de um indígena e uma dezena de feridos
Daniele Osório, da Defensoria Pública da União, avalia que essa violência no Estado é consequência direta da omissão do governo federal nos processos de demarcação de terras indígenas. “O território tem uma importância muito grande para o povo kaiowá e isso não foi levado em consideração à época que foram confinados em pequenas reservas, distantes de seu território original. O que eles tentam agora é o retorno à terra de seus ancestrais”, diz. Além disso, acrescenta a defensora, os limites da aldeia Amambai são bem menores do que a área que ocupavam. No início do século passado, as terras pertencentes aos povos indígenas do estado foram indevidamente vendidas por pessoas a serviço do Estado brasileiro. “Isso caracteriza corrupção e está sendo estudado pela DPU para a defesa da coletividade indígena envolvida no processo.”
De acordo com Rosely Stefanes, advogada e professora da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, o atual conflito só pode ser compreendido a partir de uma análise sistêmica de longa duração. Isso porque todas as mazelas perpetradas contra os indígenas e, em especial contra os kaiowá, não representam fatos isolados, mas fazem parte de uma política de Estado levada às últimas consequências, cujos objetivos foram reprimir os direitos dos povos indígenas e favorecer o grande capital.
Mestre em História Indígena pela UFMS e doutora em Direito pela PUC do Paraná, Stefanes lembra que o projeto de colonização iniciado nas primeiras décadas do século XX caminhou de mãos dadas com a política de “reservamento” das populações indígenas, que acabaram confinadas em pequenos territórios. A ocupação dessas terras por colonos intensificou-se a partir dos anos 1950, com incentivos oferecidos pelo próprio governo federal. Mas foi sobretudo nos anos de 1970, no auge da ditadura e do “milagre econômico brasileiro”, que ganha impulso a expansão das fronteiras agrícolas, a mecanização e o plantio da soja, a instalação de empresas agropecuárias e o desenvolvimento de cidades que prometiam um futuro repleto de riquezas, entre elas Dourados, a segunda maior cidade do estado. A violência contra os povos indígenas vem a reboque desse modelo econômico que os expulsou de suas terras para dar espaço ao agronegócio, observa a professora. “Os fatos estão aí, não é possível ocultá-los.” •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1218 DE CARTACAPITAL, EM 27 DE JULHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Terra vermelha “
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