Sociedade

“Tentativa de estrangulamento era refresco”, conta ex-militante torturado

Em audiência sobre abusos na Vila Militar, integrantes do Colina e do VAR-Palmares lembram sessões na antiga sede da Polícia do Exército no Rio

Audiência da Comissão Nacional da Verdade e da Comissão da Verdade do Rio no auditório do Arquivo Nacional
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Do Rio de Janeiro

Dentre todas as técnicas de tortura às quais foi submetido o comandante nacional da VAR-Palmares Antonio Roberto Espinosa, a tentativa de estrangulamento era praticamente um “refresco”. “Usaram máquinas de choque em mim, tesouras simulando cortar bico de peito e pênis. Aplicavam os chamados telefones (fortes pancadas das mãos contra os ouvidos que podiam causar problemas auditivos). Depois vinham as coronhadas e o pau de arara”, lembrou em audiência da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e da Comissão da Verdade do Rio, na sexta-feira 24, no auditório do Arquivo Nacional. “Passei por todo tipo de tortura. A mais marcante delas foi ter o pênis amarrado por um arame com o cara puxando e correndo”, disse ao recordar que o torturado era obrigado a correr e não cair, tamanha era a dor quando isso acontecia.

No depoimento em que repassou a prisão e a tortura no Dops, no centro do Rio, e na Vila Militar, Espinosa disse que até hoje o tilintar de chaves ao fundo o incomoda. “Na época, eu sabia o que vinha depois desse barulho. O tilintar de chaves no fundo do corredor significava que eu seria levado de volta para o suplício”, contou. “Não existe um forma de tortura preferida, todas são detestáveis. Mas eu achava menos pior quando me batiam com socos e ponta pés porque eu conseguia sentir ódio e aquilo me fortalecia. O pior é quando te vendam e você não sabe de onde vem. Aí a tortura não se personaliza, é impessoal.”

O relato de Espinosa sucedeu a diligência à Vila Militar, na quinta-feira 23. O depoimento dele e de outros colegas de militância que por ali passaram ocorreu em sessão que buscou ressaltar as circunstâncias de dois casos de assassinato na antiga sede da PE na zona oeste do Rio: o do estudante de medicina Chael Charles Schreirer e do sargento da PM Severino Viana Colou.

“Ontem foi a segunda vez que estive no prédio onde era a PE, sendo que a primeira foi na marra. Desta vez, no entanto, foi de forma voluntária para identificar o lugar onde nosso companheiro Chael foi morto e onde teve início a desagregação psíquica da Maria Auxiliadora Lara Barcellos, minha companheira na época”, observou. “Essa tortura culminou com seu suicídio anos depois. Não foram apenas agressões físicas, mas também psicológicas.”

Dodora, como é chamada pelos antigos companheiros de luta, foi presa com Espinosa e Chael em 1969. Militante da VAR-Palmares, foi para o exílio no Chile em 1971 e depois para a Alemanha, onde se matou em 1976. Peça-chave para completar a série de testemunhos da sexta-feira, Dodora esteve presente em vídeo, através de sua fala no documentário A Report on Torture, que trata das torturas sofridas por 70 militantes brasileiros. “Eu fui colocada nua na sala com uns 15 homens da polícia. Fui espancada e me deram cerca de 20 bofetadas. Deformaram todo o meu resto. Eles mesmo falavam que queriam me mudar o rosto”, contou durante a entrevista documentada. “Durante todo o interrogatório colocaram música alta de macumba, com violenta percussão, e à medida que tocavam a música espancava meus companheiros e a mim, e pareciam completamente excitados e alegres. Pegaram uma tesoura, e fechavam-na e abriam-na nos meus seios.”

Advogado de Dodora à época, Modesto da Silveira disse ainda que a levaram para assistir Chael ser torturado até a morte. “Ela me contou que diziam: ‘Vejam o que está ocorrendo aqui. Diga ao puto do seu amante que se ele não disser tudo o que sabe vai acontecer a mesma coisa com ele’.” Emocionado, o advogado lembrou em tom de protesto: “Dodora ainda me disse apavorada: ‘Ele morreu na minha frente, eu tentava não ver, mas eles me obrigavam a encarar o que estava acontecendo’.”

Chael morreu sob tortura no dia 22 de novembro de 1969, um dia depois de ser preso. Segundo o cineasta Silvio Da-Rin, que passou pela Vila Militar na mesma época, Chael foi submetido a sistemáticas sessões de choque elétrico com o “corpo completamente encharcado”.

Seu corpo foi levado para o Hospital Central do Exército onde o general Galeno Penha Franco recusou-se a declará-lo morto no hospital, em decorrência de ferimentos, como pretendiam seus algozes, e mandou que fosse feita a autópsia. Apesar de o laudo elaborado por três médicos, sendo dois militares, ter constatado as lesões sofridas por Chael, na época o Exército anunciou que o militante havia morrido de ataque cardíaco em consequência de ferimentos sofridos na troca de tiros com os agentes. Dodora e Espinosa foram os últimos a ver Chael com vida. Em depoimento, afirmaram que o companheiro tinha o pênis dilacerado e o corpo ensopado de sangue.

Quando os três colegas de militância, presos na casa em que estavam havia menos de um mês no Lins de Vasconcelos, zona norte do Rio, chegaram à Vila Militar, Francisco Celso Calmon já estava preso na antiga sede da PE, depois de ter sido pego em Copacabana com a companheira Maria Luísa, que ali passou 42 dias, apesar de ter 16 anos e ser menor de idade. “Levei choques nas mãos e nos pés, muitos chutes nos rins. Havia ainda a ameaça de estuprar minha companheira na minha frente e também de colocar minha mãe nua diante de mim”, lembrou. “Os agentes passavam medindo a minha altura, para dar a entender que estariam cavando a minha cova, em uma espécie de intimidação. Muitos também se excitavam sexualmente quando nos torturavam.”

A perversão parecia não ter limites. Presa em 1971 em Botafogo, a pernambucana Rosalina Santa Cruz, irmã do desaparecido político Fernando Santa Cruz, conta que antes de ir para a Vila Militar passou pelo DOI-Codi, onde foi vítima de abortamento forçado sob tortura. “Depois que souberam que eu poderia estar grávida, me davam murro e ponta pé na barriga até que sangrei, e eles disseram: ‘Tá vendo? Comunista não vai ter filho!’.”

Algozes. Acusado de tortura, um dos militares convocados para depor, o capitão Celso Lauria enviou um atestado médico dizendo que não poderia comparecer à audiência. A ausência, segundo o presidente da Comissão do Rio, Wadih Damous, resultará em uma reintimação “sob pena de condução coercitiva”. “Esses agentes sempre demonstraram tanta valentia quando estavam diante de prisioneiros no pau de arara, e quando são chamados a prestar contas sobre seus atos à democracia brasileira, desaparecem, mostrando toda a covardia de algozes”, ressaltou Damous. “Vivemos no país do paradoxo. Temos na cadeia gente torturada e soltos pelas ruas torturadores que fizeram desaparecer pessoas. Ainda mantenho esperança de ver esses perpetradores no banco dos réus.”

Presente à audiência ao lado do coordenador da CNV, Pedro Dallari, a advogada Rosa Cardoso, também membro da comissão nacional, ressaltou a necessidade de que “essas pessoas sejam processadas e julgadas” e lembrou a aliança civil militar que proporcionou a impunidade de agentes torturadores do Estado: “Foi muito difícil chegar onde estamos. E as elites brasileiras tiveram uma competência extrema para adiar este momento.”

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