Sociedade

“Tenho mais medo do vírus que do câncer”

Relato aborda erosão de saúde mental durante pandemia: “Estamos no ponto crítico e este também é o momento mais difícil para mim”

Profissionais de saúde relatam trabalho em meio à pandemia (Foto: Prefeitura de Fortaleza/ Divulgação)
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Fernanda Amaral em depoimento a Victor Calcagno

Como alguém com ansiedade crônica, insônia e que tem crises de pânico vez ou outra, a ideia de uma situação que envolvesse perigo mundial, como uma pandemia ou guerra, sempre me atingiu com violência. Era algo que eu pensava de vez em quando, no que fazer caso acontecesse. Não que eu acredite que a COVID-19 seja uma arma biológica, mas vivemos em uma época que, com tanta tecnologia e globalização, um problema tão grande assim é possível, como vemos nos filmes. Mas se no cinema essas histórias são exageradas pela dramatização, tenho descoberto nesses dias de quarentena como elas se desenrolam na vida real, com as minhas inseguranças e questões verdadeiras – ainda mais quando venho me recuperando de um câncer e tinha acabado de entrar em um novo emprego no momento em que tudo começou.

A primeira vez que coloquei os pés para fora de casa desde o dia 17 de março foi no domingo em que se comemorou o Dia das Mães (10). Foram quase dois meses de reclusão completa até eu ser convencida pelas pessoas que moram comigo a fazer uma visita rápida aos meus pais, que estão a dez minutos de mim, tomando todas as precauções devidas, é claro.

Moro em São José, cidade vizinha a Florianópolis, e, no dia anterior ao município declarar a suspensão de todas as atividades não essenciais, trabalhei durante minha última manhã normal de serviço, fui ao mercado fazer uma compra grande e “me despedi” do cotidiano comum comendo em um restaurante. Desde aquele dia, quando entrei no meu apartamento, minha vida tem mudado radicalmente e, em certos momentos, digo que cheguei no limite da minha saúde mental.

O que mais sinto falta e aquilo cuja ausência mais tem me atingido mentalmente é ter uma rotina normal e bem definida. Sou assessora de comunicação em uma empresa, um trabalho que me ocupava cinco dias por semana, das 9h às 18h30, em um ritmo que regulava minha vida e trazia normalidade. O medo da pandemia e a impossibilidade de sair, no entanto, acabaram com isso de um jeito que até hoje não consegui me acostumar: com um home office que se baseia mais em cumprir tarefas que horários, além da minha vontade constante de acompanhar as notícias, não tenho horas definidas.

Me sinto consumida pelo pânico do número de mortes, dos dados aumentando a cada atualização do último noticiário e isso desregulou meus dias. Às vezes acordo cedo, outras depois do almoço, e algumas já anoitecendo, além de que posso não comer nada um dia inteiro e me alimentar demais no outro, com pratos não muito saudáveis. É claro que esse desequilíbrio também tem me afetado no serviço. A preocupação e o nervosismo diminuíram o rendimento que eu tinha e tem dias que eu apenas não consigo trabalhar.

Eu já tinha problemas de ansiedade antes e tomo um remédio para isso. Não gosto de lugares muito cheios, por exemplo, ou quando subitamente fico insegura demais – me sinto ameaçada, fico nervosa, e é aí que as crises de pânico costumam acontecer. Meu coração dispara, fico ofegante, não consigo respirar bem, tenho tremedeira e começo a chorar, geralmente só me acalmando quando alguém, normalmente meu namorado, que já sabe como proceder nesses casos, me ajuda a respirar fundo.

Se isso já acontecia, no entanto, na quarentena passou a acontecer mais vezes e mais gravemente. É um efeito dominó: fico nervosa pela pandemia, então não penso em outra coisa, não consigo dormir nem comer, no dia seguinte não trabalho direito, fico pensando que vou perder meu emprego e me sinto ainda mais nervosa, o que resulta nas crises e me impossibilitam novamente. Especialmente com relação ao serviço a preocupação é maior, já que comecei nele em janeiro e tinha muitas expectativas. Ninguém foi demitido ainda, mas a cobrança é minha comigo mesma, porque sinto que estavam apostando alto em mim e agora não me sinto útil, entregando muito menos do que me pediram.

São muitas as situações na pandemia que fico imaginando com medo, desde as mais bobas até as mais graves. Quando o entregador de pizza chega, recebo ele de luvas e máscara, além de passar álcool em toda a embalagem antes de abrir, mas ainda assim fico pensando, depois de comer, se não teve algum lugarzinho em que o vírus ficou. Também me assusta pensar que vou ter que sair de casa para fazer um exame daqui uns dias. Tive câncer no colo do útero, fiz uma cirurgia para remover uma parte dele em novembro e agora estou fazendo imunoterapia, tomando remédios todos os dias para a doença não voltar. Terei justamente que ir ver se está tudo bem e a ideia de entrar num hospital e ser tocada por um médico, nessa situação de pandemia em que os ambientes hospitalares são os mais afetados, me deixa muito desconfortável. Tenho mais medo do vírus que do câncer.

Não sei como as pessoas reagirão depois que tudo isso passar, mas sei que vai me deixar marcas, como algo ruim que quero esquecer. Ficar tanto tempo em casa me faz pensar que tenho que cuidar melhor de mim, me alimentar bem, fazer exercícios e valorizar minha saúde mental, o que acredito que será mais levado em consideração pós-pandemia – parei de fazer terapia há mais de dez anos e agora vejo que falta faz.

As pessoas estão vendo quem se preocupa com elas de fato, quem tem mantido contato na quarentena e esse tipo de contato também vai ser levado em conta depois. Além disso, também estamos vendo a liberdade de um jeito diferente, já que estão todos presos ao mesmo tempo. Sinto uma falta tremenda, por exemplo, de fazer minhas aulas de informática pessoalmente, e não via internet, como o curso tem seguido agora.

Estamos no ponto crítico da pandemia e este também é o momento mais difícil para mim. Percebi isso quando vi as imagens das covas sendo abertas às dezenas e fiquei sabendo que, mesmo assim, alguns lugares têm que enterrar os cadáveres em vala comum. Por essas e outras que, quando saí de casa no Dia das Mães, tive outra crise de ansiedade na rua, já que não estava preparada. Outra vez, me acalmei respirando fundo, com a ajuda de outras pessoas, e consegui me recuperar. Já tive situações bem ruins na vida, como essa agora, mas a verdade é que de todas consegui me recuperar, como vai ser dessa vez também.

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