Sociedade

Tabuleta velha

Quando cheguei em casa, um vazio na paisagem me corroeu a certeza de que o mundo goza ainda de alguma estabilidade. Meu vizinho derrubou a árvore em sua calçada

Tabuleta velha
Tabuleta velha
Capa do livro Esaú e Jacó, de Machado de Assis
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Não houve como não lembrar o capítulo do romance Esaú e Jacó, do nosso velho Machado, que me sugeriu este título. Não, não vou falar do velho Custódio, o confeiteiro, que por pouco não chorava ao ver o frontispício de seu estabelecimento sem a tabuleta. Caso de estima. E os casos de estima, sejam quais forem, devem ser respeitados, pois ela, a estima, anda já tão escassa neste mundo de parafernália eletrônica. Mas não foi esse o caso.

Quando cheguei a casa, à tarde, um vazio na paisagem me corroeu a certeza de que o mundo goza ainda de alguma estabilidade. Meu vizinho derrubou a árvore em sua calçada. E sua ausência, a falta da árvore, um belo exemplar de oiti, que vi nascer, meus olhos ajudaram a crescer, e há anos vinha deitando sombra fresca sobre este pequeno pedaço da Terra, pois sua falta me chocou, me convenceu de que realmente vivemos num mundo líquido, mas no sentido de que nada mais é estável.

Guardei o carro e, à maneira do velho Custódio, voltei à rua para sofrer aquele pedaço de paisagem que me foi arrancado. Voltei para curtir o sofrimento de não encontrar mais uma velha amiga. E ali fiquei, parado, os olhos parados, meu tempo parado, minha mente tentando recompor o verde claro com que a copa me saudava todos os dias.

Um casal de sanhaços empoleirados num fio de luz olhava para baixo, pareceu-me que aturdidos, sem entender o que lhes tinham feito com o ninho quase pronto para receber sua geração.

Da melancolia, aos poucos fui descendo para a reflexão, e do Machado, com seu Custódio, fui parar no Fernando Pessoa. Lembrei-me então de seu poema Cruz na porta da Tabacaria, principalmente aquela estrofe:

Ele era o dono da tabacaria.

Um ponto de referência de quem sou

Eu passava ali de noite e de dia.

Desde ontem a cidade mudou.

O que somos nós, senão nossas referências, a soma das paisagens internas e externas, algumas opiniões, o espaço que ocupamos no corpo do ser social? Ah, meu caro vizinho, desde ontem à tarde quem mudou fui eu, que já não posso mais ser o mesmo se um pedaço de mim não existe mais. Não se derrubam árvores dessa maneira, porque derrubar uma árvore, pode crer, é muito mais do que derrubar uma árvore. E ainda não estou pensando no futuro, ainda não me ocupo do planeta e tudo aquilo de que falou praticamente no vazio o Al Gore. Não, porque ele é homem de ciência, e a ciência não combina com as viagens e fantasias que me servem para sentir o mundo.

E se alguém te perguntar para que serve a literatura, pode responder sem medo de errar: Para ver melhor o mundo.

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