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Sob risco de privatização, EBC luta para se manter viva

Mais do que nunca, a comunicação pública é essencial para a garantia do direito à informação e para sobrevivência da democracia no Brasil

Sede EBC, em Brasília. Foto: Agência Brasil
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*Por Mariana Martins

Desde o início do governo Michel Temer, quando a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) começou a sofrer reais ameaças de extinção, buscamos destacar por notas e artigos a importância de mantê-la como expressão da comunicação pública. A EBC sobrevive cambaleante a ataques constantes e já está descaracterizada de seus princípios e objetivos.

A lei que a criou foi mutilada e seu jornalismo tem o governismo e a censura como modus operandi. Com a chegada de Jair Bolsonaro ao poder, a situação se agravou. A unificação da TV Brasil e da TV NBR colocou a EBC em flagrante inconstitucionalidade.

Não raro assistimos a EBC servir como porta-voz de um governo que ataca o Estado de Direito, os Direitos Humanos, faz proselitismo religioso e propaganda militar. Para expor ainda mais o tamanho do problema que a Empresa enfrenta, atualmente o seu Diretor Presidente, o Diretor Geral e o Diretor Financeiro são militares sem nenhuma experiência em comunicação pública.

Mas então, por que seguimos defendendo a EBC?

Assim como em outras áreas de ação do Estado, quando se analisa a EBC não se enxerga a Comunicação Pública que defendemos, que estava na construção no país desde 2007, mas sim a expressão de um projeto fascista que se utiliza de um discurso neoliberal para destruir as políticas de Estado. As pouco consolidadas, como é o caso da comunicação pública, são as mais afetadas. Precisamos entender que a EBC e o projeto de comunicação pública que ela representa é muito maior do que esse (des)governo.

A complementaridade entre os sistemas público, estatal e privado de radiodifusão foi positivado na Constituição Federal de 1988 justamente na tentativa de expressar um Estado mais plural e democrático. A comunicação social figura na CF ao lado da saúde, da educação, da assistência social, da cultura e do meio ambiente como parte da chamada Ordem Social, que são direitos que devem ser garantidos e regulados pelo Estado e são fundamentais para o exercício da cidadania.

Privatização

Na última quinta-feira 21, o Governo Federal incluiu a EBC no seu Programa de Parcerias e Investimentos (PPI). E o que isso significa? Significa que o governo quer se desresponsabilizar – mais uma flagrante inconstitucionalidade – de prover a radiodifusão pública como diz a Constituição no seu Art. 223.

Na prática, esse sim pode ser um golpe muito maior no projeto de comunicação pública, porque é de difícil reversibilidade no futuro. Para além de toda a estrutura da Empresa, construída não ao longo dos seus 10 anos, mas bem antes disso, visto que a EBC foi formada com o espólio de emissoras educativas e governamentais (algumas das mais antigas do país), a EBC poderia também perder seu espaço no espectro, ou seja, o canal que chega na casa do cidadão através do rádio ou da TV.

Como as concessões de radiodifusão são dadas por 10 ou 15 anos, a depender de se rádio ou televisão, seria praticamente impossível rever este espaço para retomar a comunicação pública quando o Brasil finalmente retomar os rumos da democracia.

Por isso é tão importante manter a EBC pública e financiada pelo Estado, mesmo no desgoverno e se prestando a um papel aquém do esperado. A EBC é também formada por emissoras, principalmente de rádio, que têm alcance mais amplo do que qualquer emissora comercial e chega em rincões onde nenhuma outra forma de comunicação consegue chegar.

Em um momento de crise pelo qual estamos passando, com uma pandemia sem precedentes, fazer chegar a informação (que também é um direito) em lugares onde ninguém chega é fundamental e revela a importância da comunicação pública e de políticas de comunicação (como o acesso à internet, por exemplo) garantidas universalmente pelo Estado.

Não vamos desistir da EBC

Esses dias me vi (mais uma vez) tendo que comparar a EBC ao SUS para explicar a sua importância. O desafio era convencer uma pessoa a enviar uma foto para um programa da Empresa. Ao enviar um pedido a uma amiga médica e militante da saúde pública para que mandasse uma foto de sua atuação na linha de frente contra a covid-19 a resposta que recebi foi: “Mas a EBC não é ‘minion’ agora?”.

A resposta que veio em forma de pergunta retórica fazia todo sentido. Quem hoje está no front tendo que salvar vidas e defender o SUS de um presidente que ataca a ambos de maneira irresponsável não quer saber de mostrar a cara em um programa de uma empresa que funciona para esse governo.

Eu respondi a ela que sim. Que, infelizmente, a EBC não tinha mais nenhuma garantia de fazer uma comunicação pública e estava tomada por pessoas que tentam usá-la para, no mínimo, blindar o governo. Mas não titubeei em emendar: “Mas vocês não deixam de defender o SUS porque ele está sob ameaça, não é verdade? Nós também não desistimos da EBC”.

Apesar de uma gestão sofrível, a EBC ainda tem profissionais sérios e competentes, que estão trabalhando no seu limite – e enfrentando cotidianamente as chefias – para entregar o melhor ao cidadão. Assim como o SUS, mas infelizmente sem sua robustez e capilaridade, a comunicação pública é fundamental para a formação do cidadão e da cidadã, para o país, para a democracia e seria muito bom tê-la em pleno funcionamento neste momento de crise.

O tamanho do Estado e as áreas que ele deve atuar tem sido o foco do debate de vários campos desde o início desta crise. A intervenção do Estado na economia e na saúde, por exemplo, estão sendo discutido cotidianamente. De uma hora para outra praticamente desapareceram – com exceção do atual ministro da economia e seu time – as pessoas que eram contra um Estado provedor de um sistema público de saúde, como é o caso do SUS, e um Estado social garantidor de condições mínimas de sobrevivência econômica da sua população.

Além do SUS e dos auxílios emergenciais, as escolas e universidades públicas vêm garantindo desde a subsistência de crianças a pesquisas de ponta para o combate ao novo coronavírus, os bancos públicos estão garantindo programas de apoio às empresas e o pagamento dos auxílios. Poderíamos listar inúmeros outros exemplos que a atual crise sanitária e econômica está nos dando sobre a importância do papel do Estado, mas bom mesmo seria poder dar o exemplo da comunicação pública.

Não há dúvidas de que o acesso à informação é tão importante neste momento quanto o acesso à saúde e ao auxílio emergencial, por exemplo. Muitas das medidas que precisam ser tomadas para conter a pandemia depende dos meios de comunicação para chegar à população. A ideia de que a comunicação é um direito transversal, que dá inclusive acesso a outros direitos, se materializa de forma explícita nesta crise sanitária.

Precisamos ir além da garantia do direito à informação, garantindo o direito à comunicação e a existência de uma comunicação pública, livre dos interesses do mercado e do governo, que possa, por exemplo, denunciar não só as deficiências no pagamento do auxílio emergencial para a população mais carente, mas também as vultuosas quantias que os bancos e as grandes empresas estão abocanhando nesta crise.

Que a verba destinada aos bancos – na ordem de 1,2 trilhão de reais – foi liberada rapidamente enquanto ainda há trabalhador aguardando o primeiro mês do auxílio emergencial de R$ 600. A necessidade de uma comunicação pública não se mede apenas pela informação que chega ao cidadão, mas também por aquelas que potencialmente deixam de chegar. A comunicação pública seria responsável também por denunciar discursos de ódio e manifestações autoritárias, combater as fake news e, em contrapartida, reafirmar os Direitos Humanos e os valores democráticos.

O Brasil precisa entender que a ausência de pluralidade no ambiente comunicacional e de um sistema cujo foco seja o cidadão e a promoção da cidadania tem nos custado muito caro, muito mais caro do que qualquer investimento feito na EBC, que o governo busca pintar como gasto por não ter o “retorno” em pontos de audiência (aferidos com métricas comerciais).

Para tentar usar uma analogia com a realidade que nos atormenta, ter a ilusão de que a comunicação privada vai ser capaz de prover uma comunicação universal, plural e de qualidade é acreditar que o Brasil daria conta de cuidar de todos os infectados pela covid-19 apenas nos leitos de hospitais particulares. Mas na realidade, apenas a parcela mais rica da população teria acesso a este cuidado ou, na melhor das hipóteses, o Estado teria que pagar – e bem mais caro – para garantir que todo mundo fosse atendido de forma terceirizada (isso sem levar em consideração a importância da prevenção e da atenção primária para o combate à pandemia que só é feita pelo SUS).

Da mesma forma, achar que o contraponto da comunicação de governo é suficiente para contrabalancear o sistema privado seria o mesmo que acreditar que o uso indiscriminado da cloroquina diminuiria os impactos do coronavírus. Ir além de falsas dicotomias é, por exemplo, o desafio de um sistema de comunicação mais plural e, também, mais participativo.

A verdade é que com todos os problemas, o Brasil precisa do SUS para enfrentar a pandemia. Seria melhor que ele estivesse com o governo que jogasse a favor dele (na verdade, se assim fosse não estaríamos onde estamos). Mas mesmo com um governo que joga contra, o SUS é uma política de Estado e está ali, não dando conta de todos, mas sendo o principal instrumento no combate à pandemia e no salvamento de vidas. Eu espero que o Brasil seja capaz de entender que, da mesma forma, a EBC pode e deve ser muito melhor do que ela sempre foi e que ela é peça fundamental no nosso acesso à informação, na promoção da comunicação como um direito, na construção de uma cidadania ativa e de uma democracia real.

*Mariana Martins é jornalista, doutora em Comunicação pela UnB, gestora em Comunicação Pública da EBC e integrante do Intervozes.

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