Sociedade

Símbolo dos movimentos secundaristas de 2016, Ana Júlia volta à cena

Ela defende as universidades: ‘Quando o governo corta ou limita o Orçamento, ele destrói o sonho de milhões de jovens’

(Foto: Eduardo Matysiak)
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O corpo franzino, os cabelos esvoaçantes, o sorriso largo e a voz pausada disfarçam a força da curitibana Ana Júlia Ribeiro, 18 anos, aluna do terceiro período de Direito e Filosofia. “Minha história foi um acidente”, resume. Tudo começou em uma quarta-feira, 26 de outubro de 2016.

Mais de 800 escolas no estado permaneciam ocupadas por estudantes secundaristas, em protesto contra a Medida Provisória de Michel Temer que previa a reformulação no Ensino Médio. Eis que Ana Júlia atende ao telefone. “Recebi o convite para falar na Assembleia Legislativa sobre a paralisação. Pedi um tempo para consultar os companheiros. Eles acharam que eu devia aceitar. Topei.” No dia seguinte, emocionada e “muito nervosa”, a secundarista subiria à tribuna, não se intimidaria diante do presidente da Casa, calaria o plenário e despontaria como a estrela do renascimento do movimento estudantil.

“Não somos doutrinados nem estamos lá para brincadeira. Sabemos o que queremos e pelo que estamos lutando”, discursou. Dois dias antes, um colega havia morrido em uma das escolas ocupadas. Ana Júlia encarou os parlamentares e disparou: “Vocês estão com as mãos sujas de sangue”. Ao fim, acabaria ovacionada.

Filha de um assistente social, depois advogado, e uma professora primária, Ana Júlia teve uma infância tranquila. Aos 6 anos dava sinais de seus pendores políticos. Em 2006, a escola ensaiava uma peça de teatro e ela fazia parte do elenco. Até saber de uma apresentação especial para o então prefeito da capital, o tucano Beto Richa. “Disse à professora que não iria participar, porque não gostava dele.” A mãe foi chamada pela direção da escola, mas ninguém conseguiu demovê-la da ideia. A carreira de atriz estava encerrada.

Na adolescência, uma de suas paixões foi a leitura. Com o pai fazia apostas: a cada 15 livros lidos, com os respectivos resumos apresentados, tinha direito a um presente. Encarou as obras de Shakespeare. Em casa, os livros ficavam espalhados sobre uma estante e ela escolhia pelo título. Aos 12 anos esbarrou em um exemplar de O Príncipe, de um certo Nicolau Maquiavel. Leu, mas não entendeu. “Por coincidência, neste semestre, na faculdade, estamos estudando esse livro”, conta.

Pouca coisa mudou desde o dia em que Ana Júlia enfrentou os deputados paranaenses, quase três anos atrás. O cenário só piorou, na verdade. Tornou-se impossível, portanto, dar um tempo na militância. Nos protestos em defesa do ensino e da ciência, em maio, a agora universitária estava nos palanques em Curitiba. “A educação é a base segura do desenvolvimento econômico e social de qualquer país. Educar é apropriar conhecimento. Precisamos dotar nossos jovens de formação humana e intelectual, para depois pensar em capacitação. No Brasil, interessa apenas o trabalho para se transformar em mão de obra. Este deve ser o grande embate em favor da educação pública”, resume.

A deterioração social, política e econômica teve o efeito de fortalecer as suas convicções. “Comigo, todo esse processo deu-se às avessas. Quando tudo aconteceu, eu não tinha formação política ou conhecimento teórico. Não sabia o que era militância política. Restou seguir minha intuição e os conselhos de quem me cercava.”

A educação pública, acredita, não pode se manter à base do romantismo, das planilhas teóricas ou das promessas de campanha, mas a partir de ações concretas, capazes de interpretar o mundo real. “Quando o governo corta ou limita o Orçamento, ele destrói o sonho de milhões de jovens. Tirar dinheiro dos restaurantes universitários é fazer os estudantes passarem fome.” Como no caso das ocupações secundaristas de 2016, avalia, o principal desafio é convencer os universitários da importância das políticas públicas e incentivá-los a protestar contra a usurpação de seus direitos.

“Minha história foi um acidente”, resume a estudante, ao relembrar a ocupação das escolas em Curitiba três anos atrás

Nesse esforço ela não está sozinha. Matteus Henrique de Oliveira, 22 anos, aluno de Direito na Federal do Paraná, é secretário-geral do Diretório Central dos Estudantes. Empenhado na luta por melhorias no ensino público, ele acredita que o maior desafio do movimento estudantil neste momento tem sido manter a força e a coesão. “Como lideranças, não fomos capazes de mobilizar os estudantes em questões como a reforma trabalhista e, mesmo recentemente, na discussão sobre a reforma da Previdência. Eles vieram às ruas porque, de fato, agora o problema os atinge diretamente.”

Deu-se, acredita Oliveira, um salto de qualidade. A partir das demandas pessoais, os estudantes entenderam os efeitos gerais das medidas do governo sobre a vida dos cidadãos, estejam eles ou não em uma faculdade. E vê nos protestos uma oportunidade para o movimento estudantil recuperar o protagonismo do passado. “Não basta sair às ruas e se manifestar. É preciso discutir, debater e propor medidas. Faltou, para nós, uma política de comunicação que mostrasse propósitos e objetivos claros.”

Ana Júlia teve de aprender rápido a lidar com as nuances da vida universitária, mas tudo em sua vida sempre aconteceu de maneira veloz. Sua indicação para falar na Assembleia não foi por acaso. A Medida Provisória nº 746 começava a ser discutida pelos estudantes e professores. Um panfleto com informações sobre as alterações no Ensino Médio caiu em suas mãos. A leitura atenta estimulou-a a discutir a MP com colegas. “No início eram poucos, cinco ou seis apenas. Mas tomamos consciência de que as mudanças iriam afetar as nossas vidas.”

Com Kailash Satyarthi, Nobel da Paz, e a então senadora Fátima Bezerra. (Foto: Marcos Oliveira/AG. Senado)

O primeiro passo levou o grupo à sala da diretora da escola. Ana Júlia e os colegas queriam permissão para estender o debate aos demais estudantes. A diretora não se opôs, mas limitou as reuniões a antes e depois do recreio. “A gente lia o folder que tinha recebido, ponto por ponto. Depois, debatíamos cada item. Descobrimos que nós, estudantes, seríamos os mais prejudicados.” As conversas ganharam dimensão com as manifestações marcadas naquele período. Na primeira passeata, cerca de 30 dos 400 estudantes saíram às ruas. Foi só o estopim. Insuflados pelas crescentes manifestações Brasil afora, os alunos de Curitiba decidiram ocupar a escola como forma de protesto. “Foram 15 dias intensos”, recorda. Os professores não se envolveram. Coube aos próprios estudantes planejar a ocupação. Eles mapearam o prédio e dividiram as tarefas.

Para a maioria, acredita Ana Júlia, o grande aprendizado foi perceber que a democracia exige uma boa dose de paciência e de maturidade para conviver com as divergências e as adversidades. “A quase totalidade deles nunca havia participado de uma manifestação pública. Até os diretores e os professores aprenderam a lição. Eles não foram democratas por opção, mas porque viram que era a melhor opção.”

Aos 18 anos, ela já pode se considerar uma experiente militante. Após o discurso na Assembleia Legislativa, choveram convites para viajar pelo Brasil e pelo mundo. “Imagine, eu nunca havia me hospedado em hotel. Para mim, foi um enorme choque. Uma reviravolta sem limites”, recorda. Esteve na Índia, na Costa Rica, no Uruguai e na Itália. Sua próxima parada será em Gana, na África.

Além da militância estudantil, Ana Júlia coordena no Brasil a campanha “100 Milhões por 100 Milhões”, do Nobel da Paz Kailash Satyarthi

A convite do Prêmio Nobel da Paz em 2014, o indiano Kailash Satyarthi, assumiu, no Brasil, a coordenação da juventude na campanha internacional “100 Milhões por 100 Milhões”. O objetivo do projeto é mobilizar 100 milhões de indivíduos, especialmente jovens, na luta pelos direitos de 100 milhões de crianças que vivem na extrema pobreza, sem acesso a saúde, educação e alimentação, em situação de trabalho infantil e completa insegurança. O projeto aumenta a sua responsabilidade – e a sua projeção.

Ana Júlia e Oliveira são protótipos de uma nova geração de estudantes que não se envergonham de defender um ensino público, gratuito e de qualidade. Filhos de trabalhadores, mães professoras, estudaram em escolas públicas e foram forjados na defesa dos interesses da maioria. O conhecimento da realidade deu-se fora das salas de aula. Brotou dos desafios cotidianos, da defesa dos valores democráticos, da ocupação das ruas. A experiência vale como um diploma.

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