Sociedade

Simbad, Aladdin e as mentiras dos canalhas

Massacre de Orlando ressuscitou, inclusive na imprensa, uma velha mentira sobre a “implantação do ensino da religião islâmica nas escolas”

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Você sabia que os números que a gente usa são chamados de “arábicos”, porque foram desenvolvidos por matemáticos persas e árabes na Índia, a partir das letras árabes, e se expandiram pelo mundo islâmico antes de chegar à Europa?

Sabia que boa parte da filosofia grega, inclusive obras de Platão e Aristóteles, foi preservada pelo mundo islâmica durante a Idade Média, o que permitiu seu resgate no Ocidente durante o Renascimento? Sabia que o consumo do café, originário da África, começou sua expansão no mundo árabe e foi torrado pela primeira vez na Pérsia – hoje, o Irã?

Pois é. São muitos os traços da nossa cultura que devemos aos árabes e ao mundo islâmico da Antiguidade. E aqui, no Brasil, a herança deles não se limita apenas à esfiha e ao kibe que comemos nas lanchonetes, mas também a muitas palavras da nossa língua.

Entre outras de origem árabe, podemos citar: açougue, açúcar, alcachofra, alcateia, alfaiate, alforria, algoritmo, almanaque, alvará, arroz, azeitona, damasco, enxaqueca, fulano, garrafa, laranja, limão, nora, oxalá (sim, esse “-alá” final é o Allah mesmo, e a palavra significa: “Se deus quiser”), prisão, tambor, tapete, xadrez e xarope. 

Essa herança linguística tem a ver com a invasão muçulmana na Península Ibérica, que começou lá pelo século VIII e influenciou também a língua espanhola. De acordo com o dicionário Houaiss, há cerca de 700 palavras de origem árabe no português. E a coisa não para por aí.

O Brasil teve, também, uma importante imigração de diferentes povos árabes, como sírios e libaneses. De acordo com uma pesquisa de 2008 do IBGE, 0,9% dos brasileiros brancos disseram ter origem familiar no Oriente Médio.

A cultura árabe e as tradições islâmicas estão presentes na cultura ocidental e, como parte dela, na cultura brasileira. Na língua, na culinária, na filosofia, nas artes, na literatura. Quem nunca leu os contos das “Mil e uma noites” deveria ler – e qual criança não conhece Simbad, o marinheiro, Ali Babá e Aladin?

Por que estou falando de tudo isso?

Talvez você tenha lido na internet e nas redes sociais que eu apresentei um projeto de lei para “instaurar o ensino obrigatório da religião islâmica nas escolas”. Obviamente, isso é mentira.

Aliás, é uma estupidez, porque um projeto como esse iria contra a laicidade do Estado, que eu defendo, e seria inconstitucional, porque feriria a garantia da liberdade religiosa – liberdade que se tornou lei graças a um esquerdista baiano como eu, o escritor Jorge Amado.

Porém, esse boato estúpido, como toda mentira, precisa de algo que lhe dê alguma credibilidade. E o que existe, sim, é um projeto de lei, o PL-1780, que propõe incluir no currículo da rede de ensino a temática “cultura árabe e tradição islâmica”.

O projeto não é meu, mas do deputado Miguel Corrêa, mas eu assinei em apoio a ele em 2011, no primeiro ano do meu primeiro mandato. E continuo achando que ele é bom! 

Relendo o texto, mais de cinco anos depois, acho que a fundamentação – que não fui eu que escrevi, porque o projeto não é meu – é confusa e, por isso, foi fácil para os difamadores usá-lo para uma campanha mentirosa.

Se o deputado Corrêa me apresentasse essa proposta hoje, eu responderia: “Tudo bem, mas vamos explicar tudo melhor na fundamentação, porque os difamadores vão deturpar tudo para dizer que queremos promover até o terrorismo islâmico”; mas em 2011, eu ainda não tinha aprendido o quanto é difícil enfrentar pessoas desonestas e de má fé no parlamento, que deturpam tudo e mentem sobre tudo.

Contudo, é importante frisar o seguinte: o que importa de um projeto são seus artigos, que têm valor legal, e os artigos desse projeto são ótimos. O que ele propõem, como vocês já devem ter imaginado, é que se incluam no currículo das escolas conteúdos sobre a cultura, as tradições, a história e inclusive a religiosidade dos povos árabes, o que não tem absolutamente nada a ver com ensinar religião! De fato, o projeto diz que as disciplinas onde isso será feito serão: educação artística, história e literatura.

Ou seja, o projeto propõe que as crianças estudem sobre as artes, a literatura e a história dos povos árabes, da mesma forma que estudamos sobre as dos povos europeus.

De fato, já existe uma lei muito parecida, aprovada em 2003, que dispõe sobre o ensino da cultura e da historia dos povos africanos: a lei 10.639/03. Se algo pode ser dito sobre a religiosidade de qualquer povos será nesse contexto, da mesma forma que quando os alunos estudam a história da Europa, aprendem como foi o surgimento do cristianismo e da Igreja Católica e a influência política e social que ela teve em diferentes períodos. Da mesma forma que os alunos estudam a influência da religião cristã nas artes plásticas, na literatura ou na filosofia!

Repito: isso não tem nada a ver com “ensinar religião”. Aliás, aprender tudo isso pode servir também para entender que os povos árabes são muito mais que o terrorismo islâmico, da mesma forma que a história das tradições e da cultura cristã é muito mais que um pastor infeliz e outro com a mala cheia. 

Mas os canalhas homofóbicos querem me construir como inimigo da fé cristã e dos cristãos, então, que melhor mentira poderiam inventar? “Jean Wyllys quer ensinar nossas crianças a serem muçulmanas!” Tem que ser muito canalha para inventar uma estupidez como essa e muito burro para acreditar nela.

Mas, infelizmente, tem muito canalha e muito burro. E, infelizmente, também, a imprensa não ajuda. Tem jornalistas que publicam boatos de internet em veículos de comunicação sérios, como se fossem verdade. Já falei sobre isso antes.

Desta vez, foi o jornal Extra que publicou o boato como se fosse verdade. Tanto custava ler o projeto e ver o que ele realmente diz antes de fazer copy+paste, num jornal, do texto de um boato de internet?

Tanto custava ligar para o meu gabinete e pedir explicações antes de repetir uma mentira? É muita burrice motivada, muita preguiça, muita desonestidade intelectual. E só serve para alimentar discursos de ódio. 

Cadê os editores? Ninguém revisa o que publicam? 

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