Sociedade

Sem direitos e auxílio emergencial, trabalho doméstico perde 1,5 milhão de vagas

Invisibilizada, categoria sofre com informalidade, falta de acesso à direitos básicos e desprezo por parte das políticas públicas do governo

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*Por Maria Martha Bruno e Flávia Bozza Martins

“Empregada doméstica que presta serviço em residência está sendo obrigada a trabalhar, mesmo com ambos os patrões (homem e mulher) terem (sic) sintomas para COVID-19 e o exame clínico para atestar a doença ter atestado positivo”, Brasília (DF). “A referida senhora também compartilha máscara com sua empregada doméstica quando determina que saia da residência para cumprir alguma ordem”, Cachoeiro do Itapemirim (ES). “A trabalhadora relatou estar há 100 dias trabalhando diretamente, desde o isolamento social decorrente da pandemia. Ela é empregada doméstica e mora no local de trabalho, foi contratada para ser babá, porém, há meses acumula as funções de cozinheira, sem acréscimo salarial. Ela não tem folga em domingos e feriados, trabalha ininterruptamente e, apesar de ter passagens compradas para visitar a família, em Belém, desde março, a patroa não a libera. Além disso, inexiste recolhimento regular das contribuições sociais e do FGTS. A trabalhadora não tem parentes em São Paulo e necessita ver os pais na cidade de origem”, São Paulo (SP).

Acessadas pela Gênero e Número via Lei de Acesso à Informação (LAI), para o estudo “Cenários e possibilidades da pandemia desigual em gênero e raça no Brasil”, em parceria com o Instituto Ibirapitanga, denúncias enviadas ao Ministério Público do Trabalho nos cinco primeiros meses da pandemia de Covid-19 no Brasil ilustram abusos e violações cometidas contra trabalhadoras domésticas, privadas do direito à quarentena e c1onsideradas “essenciais”, seja por decreto estadual, como ocorreu no estado do Pará, seja pela vontade de empregadores.

Como outras comoções causadas por tragédias no Brasil, as mortes emblemáticas de Cleonice Gonçalves, de 63 anos, primeira vítima da Covid-19 no estado do Rio de Janeiro, infectada pelos patrões que haviam chegado da Itália, e de Miguel Otávio Santana da Silva, deixado sozinho no elevador pela empregadora de Mirtes Renata, no Recife (PE), não provocaram mudança alguma em uma da relações trabalhistas mais antigas e desiguais do país.

A classe reúne cerca de 6,2 milhões de pessoas, sendo que 93% são mulheres e, entre elas, 68% são negras, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar (Pnad) de 2018, do IBGE, a mais recente a compilar esses números.

Somente as 3,9 milhões de trabalhadoras negras domésticas do Brasil, como Cleonice e Mirtes Renata, representam mais que o triplo do total de caminhoneiros no país, recentemente incluídos pelo governo federal no grupo prioritário da vacinação contra o coronavírus. De todas as categorias profissionais deste primeiro grupo, trabalhadores domésticos, aliás, são um grupo menor apenas que os profissionais de saúde, que compreendem 6,6 milhões de pessoas.

Ainda segundo números do IBGE sobre o impacto da pandemia no mercado de trabalho, o setor foi o segundo mais atingido no país. A Pnad Contínua, divulgada em 28 de janeiro de 2021, mostra que 1,5 milhão de postos de trabalho doméstico foram perdidos de setembro a novembro de 2020, último período analisado.

Entre as dez atividades econômicas avaliadas, o trabalho doméstico foi a segunda com maior perda (-24,2%) na comparação com o mesmo período de 2019, atrás apenas do setor de alojamento e alimentação (-26,7%). Vale ressaltar, no entanto, que, em números absolutos, as perdas são iguais: 1,5 milhão de postos de trabalho.

Se em novembro o governo federal lançou o pacote “A retomada do turismo”, que prevê a preservação de empregos no setor que mais perdeu postos de trabalho proporcionalmente, nenhuma medida para o serviço doméstico foi anunciada, além do Auxílio Emergencial, finalizado em dezembro. Ainda que numerosa e em apuros, a classe não possui apelo suficiente em Brasília. Na Câmara dos Deputados, nem mesmo o projeto de lei 2477/2020, que determinava a exclusão do trabalho doméstico do rol de atividades essenciais em todo o Brasil durante a pandemia, foi analisado pelos líderes dos partidos.

Dados acessados pela Gênero e Número, também via LAI, nos oito primeiros meses de 2020, no Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo (TRT 2/SP), mostram que 461 processos relacionados à classe foram registrados na instância.

Dos 2.358 assuntos abordados nos processos (cada processo pode conter mais de um assunto), 72% se referiam ao descumprimento de 15 direitos básicos, garantidos pela PEC das Domésticas e pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que incluem reconhecimento de relação de emprego, pagamento de 13o salário e de multa de 40% do FGTS.

Mirtes Renata, ex-empregada doméstica e mãe de Miguel, que morreu após cair do 9º andar de um prédio de luxo em Recife. (Foto: Reprodução/TV Globo)

“Tem baixa judicialização, sim. É dificílimo judicializar”, diz Junia Raymundo, procuradora regional no Ministério Público do Trabalho (MPT) no estado do Rio de Janeiro. A instância tem limitações para atuar no apoio à categoria, tendo em vista que o MPT não pode agir contra violações individuais, a não ser que firam a dignidade humana, como foi o caso de Madalena, resgatada no final de 2020 com ajuda da instituição, após viver 38 anos em condições análogas à escravidão trabalhando para uma família em Minas Gerais.

Ainda assim, o MPT recebeu nos cinco primeiros meses da pandemia 27 denúncias de abusos ou ilegalidades, sendo seis delas diretamente relacionadas à crise sanitária, como as mencionadas no início da reportagem. O TRT 2/SP não disponibiliza as petições iniciais que dão origem aos processos, apenas os assuntos de cada um deles, o que inviabiliza verificar a relação com o contexto da pandemia. Mas os dados acessados até 26 de agosto de 2020 mostram como a crise sanitária reduziu o número de processos: 56% deles foram iniciados ao longo de 5 meses, após o decreto de estado de emergência no estado, que determinou a quarentena, em 21 de março de 2020; os demais 44% foram registrados em um período bem menor, de dois meses e meio, de 15 de janeiro à data do decreto.

Trabalho doméstico: essencial para quem?

“A crise socioeconômica e sanitária e a recessão, que é anterior à pandemia, aprofundaram a violação de direitos humanos das trabalhadoras e a proteção dos direitos trabalhistas com o aumento da informalidade. Essas mulheres compõem a maioria da população que é mais atingida pela crise”, afirma a deputada federal Áurea Carolina (PSOL/MG). Em maio de 2020, após a morte de Cleonice e antes da morte de Miguel, ela foi uma das signatárias do projeto de lei 2477/2020, que excluía o serviço doméstico da lista de atividades essenciais durante a pandemia.

A maioria das domésticas não quer entrar na Justiça. A trabalhadora se prejudica, mas não quer magoar o patrão porque eles ‘são muito bonzinhos’. Sempre digo que se fossem bonzinhos, eles davam todos os direitos” — Cleide Pinto, presidenta do Sindicato das Domésticas de Nova Iguaçu (RJ)

Uma das vozes mais participativas na defesa pelos direitos das domésticas no país, ela afirma que não houve aprendizado após as mortes de Cleonice e Miguel. “Pelo contrário: estavam querendo colocar doméstica como trabalho essencial”.

A iniciativa veio do Pará, no início de maio, quando um decreto do governador Hélder Barbalho determinou a continuidade do trabalho da categoria durante o lockdown estabelecido em dez municípios. Após críticas, a medida foi restringida a cuidadores de idosos, de crianças e de pessoas doentes. O decreto contrariava uma nota técnica emitida pelo Ministério Público do Trabalho no início da pandemia, recomendando a dispensa de trabalhadoras domésticas com remuneração, bem como flexibilidade da jornada de trabalho e fornecimento de equipamentos de proteção individual.

“No início da pandemia, a gente sentiu que alguém precisava fazer alguma coisa pelo trabalho doméstico”, afirma a procuradora Junia Raimundo. Mas, do decreto de Hélder Barbalho à morte de Miguel Otávio, passando pelas denúncias que chegaram ao próprio MPT e aos sindicatos, dados e ações evidenciam que o cumprimento das recomendações não foi uma realidade no país.

 

Uma categoria vulnerável

A morte, contaminação e exposição de profissionais à covid-19 são decorrentes também de um cenário de fragilidade laboral que precede em muito a pandemia.

Apenas 1,7% dos trabalhadores domésticos do Brasil são sindicalizados no Brasil, isto é, 179 mil pessoas, segundo números da Pnad Contínua de 2019. E este é o percentual máximo desde 2012. Eles estão congregados sob o guarda-chuva da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), que reúne 22 entidades de 13 estados.

A reforma trabalhista, aprovada no governo de Michel Temer, colaborou para o enfraquecimento dos sindicatos, que dão suporte e orientação judicial às trabalhadoras, sindicalizadas ou não. “São poucos sindicatos e eles não são fortalecidos, porque não recebem a contribuição sindical”, diz Jeane Colares, coordenadora do Grupo de Trabalho Doméstico no MPT, criado no ano passado.

“Quem vai ajuizar a reclamação trabalhista? Os sindicatos estão restritos e temos a questão das provas. Como o trabalho acontece na residência, é a palavra da trabalhadora versus a palavra do empregador, o que intimida a doméstica”, atesta Jeane Araújo Colares. “As domésticas não têm condições financeiras de contratar advogados. A gente está começando a fazer uma articulação com a Defensoria Pública da União para ajudar nisso.”

Nos primeiros meses da crise sanitária, sindicatos fecharam suas sedes e recorreram ao WhatsApp como meio principal de contato e recebimento de denúncias. Essa foi a realidade em unidades espalhadas por todo o país, como os sindicatos de Nova Iguaçu (RJ), Pernambuco e do Acre. Mas, mesmo com a normalização das atividades, a partir de meados de 2020, a mobilização segue difícil.

“Muitas trabalhadoras nem sabem que existe o sindicato. A gente trabalha nas paradas de ônibus, faz rodas de conversa. Se a gente esperar a trabalhadora doméstica ir ao sindicato, ela não vai. Ela sai do trabalho tarde, tem filho, tem marido…”, diz Ana Maria Nascimento, presidente do Sindicato das Domésticas do Acre.

Além da baixa sindicalização, a formalização da classe também é reduzida, bem como a proporção de profissionais que contribuem para a Previdência: 38,8% do total, de acordo com a Pnad Contínua de 2018. Ainda segundo o IBGE, apenas 27,8% da categoria possui carteira assinada.

Fim do Auxílio Emergencial

Sem políticas públicas direcionadas à classe e com o descumprimento de direitos básicos garantidos pela CLT e pela PEC das Domésticas, a principal ajuda do Estado às profissionais foi o Auxílio Emergencial.

As domésticas foram nada menos do que a segunda classe trabalhadora mais beneficiada pela medida no país — elas tiveram ganho de renda de 61% no primeiro mês de implementação do benefício, atrás apenas de auxiliares de agropecuária, com 71%. O ganho médio de todos os 67 milhões beneficiários do Auxílio Emergencial foi de 29%. Nos três primeiros meses, os ganhos chegariam a 71%, versus 37% na média nacional. Os dados foram compilados em dois estudos da Fundação Getúlio Vargas.

Com o fim do benefício, iniciativas que ajudaram a sustentar algumas dessas mulheres começam a planejar seu retorno. É o caso do projeto “Pela vida das Nossas Mães”, que teve origem em uma carta-manifesto assinada por filhos de trabalhadoras no início da pandemia. O apelo pelo direito à quarentena remunerada evoluiu para uma campanha que organizou doações e repasses em dinheiro para cerca de 300 mulheres. O documento reuniu mais de 130 mil assinaturas.

“A gente foi super abraçado. A sociedade brasileira percebeu que esse é um calo de todo mundo. Se a gente não pensar na situação trabalhadora doméstica no Brasil, a gente vai estar só remediando e não tratando a fundo essa situação, que é uma situação escravocrata”, avalia a professora Juliana França, filha de trabalhadora doméstica e uma das idealizadoras da ação. O projeto quase foi encerrado no fim de 2020, mas em janeiro de 2021 o grupo retomou a mobilização, devido à falta de alternativas ao fim do Auxílio Emergencial.

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