Sociedade

Secretário de Defesa Social de Aracaju é ‘coronel paz e amor’

Antítese de Bolsonaro, o secretário Luís Fernando Silveira de Almeida é dedicado promotor dos Direitos Humanos

(Foto: Sérgio Silva)
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Filho de um retirante nordestino que nos anos 1960 foi ser salva-vidas no Rio de Janeiro e de uma enfermeira, o coronel da Polícia Militar de Sergipe, Luís Fernando Silveira de Almeida, trafega na contramão da maioria de seus pares – discípulos do “prende e arrebenta” e massa de manobra do mais desvairado pensamento bolsonarista. Sua visão como militar é de respeito aos Direitos Humanos, sem violência e sem mortes. “Não posso desejar a morte. Sou filho de um salva-vidas e uma enfermeira”, afirma.

Carioca, Almeida fez carreira no Núcleo de Formação de Oficiais da Reserva do Exército, no 4º Grupo de Artilharia de Campanha, na mineira Juiz de Fora. Em 1989, ingressou como aspirante a oficial na Polícia Militar de Sergipe. “Não frequentei a academia porque, à época, ela não existia em Sergipe. A legislação permitia que com a formação do Exército fôssemos incorporados.” Em seguida, cursou a faculdade de Direito e completou uma pós-graduação em “Gerenciamento Estratégico em Segurança Pública”. Na monografia de conclusão do curso, tratou da “Negociação de Conflitos Agrários em Sergipe”. Recebeu nota máxima. Em 2011, alcançou o topo da carreira ao ser promovido a coronel. Ocupou as funções de subcomandante-geral e chefe do Estado-Maior da Polícia Militar de Sergipe e chefe do Gabinete Militar do governo do estado. Atualmente é secretário municipal de Defesa Social de Aracaju.

Coronel Almeida: “Não posso desejar a morte”

“A questão dos Direitos Humanos em minha vida foi um milagre de Santa Clara”, brinca. Almeida refere-se não à fé católica, mas à ocupação da Fazenda Santa Clara, no pequeno município de Capela, em 1995, pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Foi a prova de fogo do jovem capitão que acabara de concluir sua pós-graduação. “O comandante da PM me chamou e disse ‘você não é negociador? Tem uma crise lá em Capela. Vá lá e resolva’. Como não tinha conhecimento da situação local, minha primeira medida foi conhecer a realidade. Depois, negociar.”

O PM entrou na fazenda ocupada sem farda e desarmado. A missão era de paz. Não estava ali para lutar nem para expulsar os sem-terra à força. Queria apenas entender as reivindicações das mais de 800 famílias. Formou uma roda de conversa e pediu para falarem de suas vidas. “Além das histórias de trabalho análogo à escravidão, duas coisas me calaram fundo. O lugar no qual eles dormiam era chamado senzala e o capataz da fazenda ainda era o capitão-do-mato. Tinha algo de muito errado acontecendo”, recorda. “Descobri que ali estavam homens e mulheres trabalhadores e não bandidos, marginais.” Foi a primeira das dezenas de desocupações de terra que comandou sem apelar à violência. Ao longo de 20 anos, cumpriu mais de 200 reintegrações de posse. Santa Clara é atualmente um assentamento legalizado.

Passividade x cordialidade

Por que é tão difícil encontrar oficiais como ele? Os Direitos Humanos, acredita o coronel, são mal abordados nos cursos de formação de oficiais. “Não é possível tratar dessa questão de forma apartada. Passamos horas aprendendo sobre história, legislação, mas, quando se trata de técnicas de abordagem, o negócio se resume a chutar o tornozelo e dar tapas.”

Luís Fernando de Almeida cita Paulo Freire, tem experiência em negociações com o MST e diz que o brasileiro é passivo, não cordial

Por causa dessa formação dos policiais e de outros pontos, o secretário vê com maus olhos o “pacote anticrime” do ministro da Justiça, Sérgio Moro. “Aumentará a violência policial, a letalidade. A medida acrescenta uma subjetividade absurda, a interpretação de excludente de legítima defesa. O que seria o escusável medo?”, pergunta. “Se aprovado, o pacote vai estimular o extermínio das populações vulneráveis.” Não bastassem os furos do projeto, Almeida acredita que o caldo cultural do País amplia os riscos. “Os brasileiros não são cordiais, ao contrário do que prega o senso comum. São passivos, aceitam, se submetem. Mas somos extremamente violentos, preconceituosos, machistas, homofóbicos.”

Pelas mesmas razões, o secretário opõe-se aos decretos de liberação de armas assinados por Bolsonaro. “Somente os tolos acreditam que seus problemas vão acabar se comprarem uma arma.”

Neste contexto, o policial nada mais é do que um reflexo da sociedade, posição agravada pelo fato de em geral nascer pobre e ser doutrinado a agir contra os iguais. “Paulo Freire dizia que, quando a educação não é libertadora, o oprimido carregará dentro de si um opressor.”

Ocupações legítimas

O militar considera legítimas as ocupações de terra – “há muita grilagem e enorme concentração fundiária” – e cita como uma das experiências marcantes de sua vida uma reunião entre PMs e integrantes do MST em 2007, durante o governo de Marcelo Déda. O coronel colocou frente a frente cem integrantes do MST e cem policiais do Batalhão de Choque, responsáveis pelas operações de desocupação e reintegração de posse. “O João Pedro Stédile disse que eu era maluco. Mas a experiência foi muito boa.”

O PM acumula longa experiência em reintegrações de posse de terra e em situações de conflito

Durante um dia inteiro, militares e militantes do MST trocaram experiências e aprenderam um pouco uns sobre os outros. “No início da manhã, na abertura dos trabalhos, eu disse que se, ao fim do dia, nada mudasse na cabeça de cada um em relação ao outro, que fosse por convicção e não por preconceito.” O resultado foi positivo, acredita. “Hoje existe um referencial de confiança entre as partes, principalmente do MST em relação à Polícia Militar. Quando dizíamos ‘não’ ou não podíamos atender algum pedido, eles entendiam e aceitavam. Nossa relação sempre foi pautada pela sinceridade.”

A forma de encarar a realidade e a preocupação em entender o outro lhe renderam uma prisão. Ainda capitão, após participar de um curso de aperfeiçoamento de oficiais em Maceió, na vizinha Alagoas, Almeida recebeu o convite para fazer parte de um treinamento sobre Direitos Humanos. “Comuniquei à corporação em Aracaju e recebi autorização”, recorda. O comandante-geral da PM de Sergipe, “um coronel repressor e adepto de práticas nada democráticas”, não entendeu assim e resolveu puni-lo. Ordenou seu retorno imediato e decretou quatro dias de prisão.

Além da tecnologia. Só o policiamento ostensivo não basta, acredita o coronel. “Para combater a violência, precisamos melhorar a qualidade de vida nas cidades”

Após o massacre de Eldorado do Carajás, no Pará, Almeida proferiu palestra no Fórum Internacional de Segurança Pública na Amazônia. Uma atenta plateia com mais de 500 participantes, entre oficiais, praças e policiais civis, ouviu um discurso firme, mas realista. “Percebi a receptividade da parte dos policiais. Mostrei a eles que, muitas vezes, nos sentimos poderosos, uma espécie de super-homens com a arma na mão, porque somos incentivados, mandados a praticar ações truculentas. Nós, militares, sempre fomos usados para fazer o papel de serviçais do poder.”

“Nós, militares, sempre cumprimos o papel de serviçais do poder. Somos incentivados à truculência”

A experiência levou-o a ocupar a Secretaria de Defesa Social da capital sergipana. Além dos trabalhos de policiamento ostensivo com a Guarda Municipal, ele pretende implementar, entre outras políticas, ações de conscientização coletiva, principalmente direcionadas a crianças, adolescentes e jovens. “Para combater a violência, necessitamos de medidas que contribuam para a cidadania, o respeito e a qualidade de vida, que por sua vez gera segurança.”

Almeida tem plena consciência da complexidade de sua função e dos efeitos que a falta de segurança provoca nos cidadãos. “O momento é muito difícil. Há um aumento visível da intolerância, da violência, do desamor. Mas acredito que vamos superar. O País não suporta tanto ódio, tanta ganância. Não podemos deixar de lutar por um mundo mais justo, humano e fraterno.”

Otimista, o secretário aposta que o amor e o respeito serão capazes de superar a desumanidade. Resume seus sonhos na frase escrita por Ronaldo Bastos e Beto Guedes na música Sal da Terra: “É só repartir melhor o pão”.

Enquanto o Brasil sofre nas mãos do capitão, Aracaju, ao menos, escora-se no equilíbrio do coronel Almeida.

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