Sociedade

“Se tem um lugar no Brasil onde o Estado mínimo existe, é a favela”

Com pesquisas sobre coronavírus em áreas carentes, Renato Meirelles vê pandemia expor a gritante desigualdade nacional

Renato Meirelles (Foto: Reprodução/Facebook)
Apoie Siga-nos no

Se as favelas fossem um estado, seriam o quinto com mais gente, atrás de São Paulo, Rio, Minas e Bahia. Moram nelas 13,6 milhões de brasileiros, com uma maioria negra (67%) superior ao índice nacional (55%). Juntos, eles movimentam 10 bilhões por mês, média individual (730 reais) inferior ao salário mínimo (1.045 reais). Metade vive de trabalho informal e sem água potável em casa.

Essa realidade dura de 6% dos brasileiros é retratada em estudos do Data Favela, uma parceria da Central Única das Favelas (CUFA) com o instituto de pesquisas Locomotiva. A parceria voltou a campo nas últimas semanas para descobrir o impacto do coronavírus na vida dos habitantes dessas comunidades. E, em três pesquisas realizadas entre 20 de março e 5 de abril, fez constatações que deveriam envergonhar a classe média e os ricos sempre, não só quando há um vírus à solta.

Dois de cada três moradores das favelas receiam perder a fonte de renda devido às quarentenas. Oito a cada dez já viram seus rendimentos caírem, mesma proporção de mães que sentem muito medo de faltar dinheiro para alimentar os filhos. Estes, se ficam em casa por causa da suspensão das aulas, não comem merenda escolar, daí que sobe a necessidade de comida onde esta já é pouca.

Comida é a palavra-chave nessa história: 56% dos moradores de favela aguentam no máximo uma semana sem trabalhar, do contrário, não vão ter grana para se alimentar. Significa que essas pessoas apoiam a cruzada de Jair Bolsonaro contra o isolamento social? Negativo. A preocupação delas com a saúde é ainda maior: 75% temem pela própria e 87%, pela dos mais velhos, os mais vulneráveis.

A pandemia, diz Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva, joga luz sobre a tragédia nacional das desigualdades sociais. Na entrevista a seguir, ele fala de suas pesquisas recentes e da realidade nas favelas no dia a dia e na pandemia.

CartaCapital: Qual a principal constatação dessas três pesquisas tomadas em conjunto?

Renato Meirelles: É a falácia de que o vírus atinge da mesma forma pobres e ricos. O vírus que exige o confinamento deixa claro o papel que a desigualdade social traz num país, pelas condições de confinamento serem muito diferentes entre os mais pobres e os mais ricos. A poupança necessária para tempos de crise inexiste na baixa renda mas é suficiente na alta renda.

CC: Você dizia no relatório da primeira delas que via risco de convulsão social.

RM: E continuo vendo.

CC: Por quê?

RM: Eu sou pai de família. Tenho uma filha de cinco meses. Se faltasse dinheiro para colocar o que comer dentro de casa, eu ia fazer o que fosse necessário para ela não passar fome. Se precisasse correr risco de saúde, eu ia correr, se precisasse saquear um supermercado, ia fazer. Tenho certeza que muitos dos leitores da Carta também. Por que diabos seria diferente na favela? Estamos falando de um contingente gigantesco da população. A soma das favelas dá mais que o estado do Rio Grande do Sul, tem mais favelado que gaúcho no Brasil. São pessoas que, na sua maioria, trabalham na informalidade. E essas pessoas precisam ter o que comer.

CC: Então o discurso do presidente Bolsonaro tem aceitação nas favelas, já que ele prioriza a economia? O que predomina nelas, preocupação com saúde ou com economia?

RM: As pesquisas mostram que o discurso do presidente, ao justificar a saída do isolamento para proteger os mais pobres, não encontra eco na vontade dos mais pobres. As pessoas afirmam que há um monte de problemas na economia, mas acham o confinamento correto, que tem de ficar dentro de casa, que a saúde é importante. Você tem algo como 60% preocupados com a saúde, 80% preocupados com a saúde dos mais velhos. Quando essas pessoas falam que estão passando fome, que 42% já receberam algum tipo de donativo, tendo até que sair da favela para ir pegá-lo, estão falando o quê? Que precisam sobreviver, comer, não que concordam com o presidente. Não me parece justo que a sociedade obrigue essas pessoas a ter de escolher entre o prato de comida e a saúde da família.

CC: Suas pesquisas dão materialidade àquela sensação de que a demora do governo para começar a pagar renda emergencial aos informais significou um risco concreto aos mais pobres: 56% dos moradores de favelas não conseguem comer se ficarem uma semana sem trabalhar.

RM: É disso que nós estamos falando. As pessoas não têm poupança. Cada vez que se cria uma etapa a mais na burocracia para se distribuir renda, maior a chance de as pessoas morrerem de fome. É perverso. E essa burocracia existe porque o governo quer provar que a economia vai quebrar se a gente tentar salvar vidas. A questão é que a economia se recupera, vidas humanas não.

CC: Deu para captar algo que signifique revolta com essa situação, com o comportamento do do governo?

RM: O confinamento tem uma perversidade no jogo político: quanto mais ele dar certo, ou seja, quanto mais conseguir evitar mortes, mais vai parecer que era desnecessário. O grande risco que existe é pelo sucesso do confinamento. E se afrouxar o confinamento, a epidemia voltará com muito mais força, como aconteceu em Milão. Vamos pegar o exemplo de Nova York: dizem que os responsáveis pelo fato de ser a cidade onde mais gente morreu no mundo de Covid-19 são dois: a desigualdade, tanto que no Queens ou no Bronx (bairros de periferia) é o dobro de mortes de Manhattan (o centro endinheirado), e a alta concentração demográfica, menor do que nas nossas favelas.

CC: E é curioso: essa é uma doença que começa pelos ricos. Os ricos que viajam para o exterior e importaram o coronavírus para seus países.

RM: Claramente. E a questão é que, na hora em que chegar aos mais pobres, nós corremos o risco de ter que fazer vala comum para enterrá-los.

CC: Da primeira para a última pesquisa, separadas por duas semanas, houve alguma mudança importante?

RM: Cresceu a percepção sobre a necessidade do confinamento, mas isso tende a cair nas próximas pesquisas, exatamente pelo sucesso dele. Também cresceu a urgência por comida.

CC: O médico e deputado bolsonarista Osmar Terra disse que a classe média tem “geladeira cheia”, e falou isso para criticar o isolamento social. As quarentenas são necessárias, a maioria da população concorda, mas nesse ponto ele tem razão. Quem mora em favela, como mostram suas pesquisas, não aguenta muito tempo, não tem “geladeira cheia”.

RM: Eu usei muito essa frase. Uma coisa é home office com a geladeira cheia e com água potável saindo na torneira. Outra é a realidade das favelas, onde a geladeira está vazia e 46% dos lares não têm água encanada. Mas você não pode usar a miséria para justificar que essas pessoas saiam do isolamento e comprometam a saúde. Seria o crime perfeito: culpar a própria vítima pela própria morte. Não é porque não economizaram, que essas pessoas têm a geladeira vazia, é porque o Brasil é desigual e elas não tinham renda para economizar. Elas não têm água encanada porque o Estado não ofereceu. Usá-las como justificativa para romper o isolamento, é o governo querer se isentar de uma responsabilidade que é dele, de oferecer oportunidades iguais para ricos e pobres contra o coronavírus. E isso se dá, efetivamente, através de programas de distribuição de renda, seguindo o exemplo de grandes países capitalistas no mundo. Não é coisa de comunista.

CC: Suas pesquisas foram motivadas pelo coronavírus mas expõem o que é a realidade cotidiana dos moradores de favelas. É uma vida muito dura, não?

RM: A desigualdade no Brasil não começou com a epidemia. O que a epidemia faz é jogar luz sobre ela. A minha profissão permite fazer home office. Você não fala para uma empregada doméstica, um garçom, um ambulante fazer home office. Essas pessoas já viviam fora da formalidade, sem a proteção do Estado. Uma coisa importante a ser dita sobre essa onda de que o Brasil esteve à beira do socialismo é a seguinte: as favelas entenderam o mundo liberal de um jeito único. Se tem um lugar no Brasil onde o Estado mínimo existe, é a favela. Ali não há nenhum tipo de amparo estatal. Então, quando o Estado vira para essas pessoas e diz “olha, você tem que sair do isolamento social para salvar a economia”, está se isentando da responsabilidade dele. O que vai salvar a economia é a distribuição de renda. Como os grandes países capitalistas do mundo fizeram.

CC: Nas favelas as pessoas têm consciência de que estão à deriva, de que o Estado não existe para elas?

RM: Nove em cada dez moradores de favela, em sintonia com o restante da população, acreditam que a maior função do Estado é oferecer igualdade de oportunidades. Elas só querem ter a mesma chance que os outros têm de conseguir trabalhar, estudar, ganhar dinheiro e crescer na vida. A questão é que as desigualdades no Brasil fazem com que elas larguem atrás: não têm casa com regularização fundiária, não têm acesso a saúde, educação, segurança. Muitas se tornaram “empreendedoras” porque era a única chance de ganhar acima de dois salários mínimos. E elas sabem que a culpa não é delas. Digo tudo isso porque, levada ao extremo, a proposta de fim do confinamento significa dizer para essas pessoas: “Ou é isso, ou vocês vão morrer de fome”. Mas aí elas morreriam de coronavírus. Não me parece muito moral nem ético.

Mas vamos discutir do ponto de vista econômico: boa parte das casas nas favelas é sustentada por pessoas mais velhas, que têm a aposentadoria como única renda fixa da família. Se esses aposentados morrem, a renda fixa se perde. Outra coisa: parte considerável dessas pessoas trabalha na cidade, se elas se contaminarem, vai aumentar também a infecção fora da favela. Mas se nada disso funciona como argumento a favor do confinamento, vamos usar argumento um pouco mais óbvio: será que os economistas que defendem o fim do confinamento sabem que mortos não reconstroem a economia? Morto não trabalha.

CC: Você falou da importância das aposentadorias nas favelas. O governo no ano passado fez uma reforma da Previdência que, se já tivesse produzido resultado, que é a diminuição do número de inativos e do valor dos benefícios, seria pior para as favelas agora na pandemia, não?

RM: Não tenho dúvida nenhuma. Essa é uma população menos assistida do que era em outros momentos, menos assistida hoje do que era na década passada.

CC: Essa renda emergencial básica durante a pandeia para os trabalhadores informais, que são quase metade dos moradores de favela, de 600 reais mensais por três meses, é suficiente nessas comunidades?

RM: Foi um bom começo, só que serve para corrigir as desigualdades naturais do Brasil, nem as de agora com o coronavírus. Claramente não é suficiente.

CC: E em relação às crianças? A pesquisa constata que se elas não vão para a aula e ficam em casa, não vão comer na escola e isso acarreta um custo maior de alimentação onde já não existe alimento.

RM: Por isso que são fundamentais os exemplos de estados e prefeituras que estão transformando a merenda escolar em vale-alimentação. Estou dizendo isso porque meu trabalho como pesquisador é constatar fatos. Os fatos objetivos são que as pessoas passam fome, que o filho dentro de casa significa mais gastos para a família e uma alimentação pior para essa família. Os fatos são que as casas têm 20m², não há espaço do isolamento do mais velho para o mais novo, portanto, o fim do isolamento das crianças pode comprometer os mais velhos.

CC: Você estuda a opinião pública há bem mais tempo. Arriscaria dizer o quê sobre o jogo político nacional depois da pandemia?

RM: Não dá pra saber ainda. Esse governo apostou em um tipo de estratégia que só era conhecido no Brasil nas eleições proporcionais (para o Congresso). Prefere fortalecer um grupo, hoje em torno de 20%, 25% da população, e tentar ganhar a eleição com ele, em oposição a um outro grupo, que é o PT. Com 20%, 25% do votos, dá para ir ao segundo turno e, se for contra o PT, o Brasil volta a ficar dividido e o Bolsonaro tem grande chance de ser reeleito.

A postura que esse governo tem tido em relação ao coronavírus fez mudar uma coisa no jogo: pessoas de maior poder aquisitivo, que eram a principal base eleitoral do governo, começaram a ficar com medo e a colocar em xeque esse governo. Qual é a postura do governo então? Eleger como principal inimigo os governadores que estão no mesmo campo político, mas com um postura um pouco diferente, que é o caso do (tucano paulista João) Doria e do (carioca do PSC Wilson) Witzel. Os dois seriam opções mais palatáveis à classe média tradicional desiludida com o Bolsonaro.

Se o confinamento der certo e morrer meno gente, o Bolsonaro vai conseguir se consolidar com aquelas pessoas que, como ele, pensam: “Não falei que era um exagero? Agora aguentem as consequências na economia”. Ele terá uma desculpa para o fracasso da economia. A questão é que difícil jogar a economia no colo dos governadores, em geral é uma pauta federal, não estadual ou municipal, então não necessariamente essa estratégia do Bolsonaro vai dar certo.

O outro cenário, que acho o mais provável, é a flexibilização da quarentena com o tempo, daí o vírus vai voltar com muita força, e quando as mortes deixarem de ser estatísticas ou números frios e passarem a ser meu vizinho, meu primo, minha irmã, minha mãe, minha avó, você vai ter uma revolta grande da sociedade. Espero que não seja isso que aconteça, mas hoje é um palpite provável.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo