Sociedade

Riqueza protegida pelo anonimato

O Brasil não conhece os seus ricos, diz professor da Unicamp

“A desigualdade caiu no caso da renda, não quando se medem os ativos financeiros e os bens, cada vez mais concentrados”. Foto: Isadora Pamplona
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Estudioso há décadas do sistema financeiro, o economista Fernando Nogueira da Costa recebeu em setembro um prêmio do Conselho Federal de Economia (Cofecon) pela publicação do livro Brasil dos Bancos (Edusp), interpretação crítica da história bancária brasileira. Ex-vice-presidente da Caixa Econômica Federal (2003-2007), Costa não seguiu para a iniciativa privada. Preferiu voltar à Unicamp, onde é professor do Instituto de Economia. E coleta indícios sobre a concentração de riqueza no País, que ele supõe seguir em alta, apesar da falta de informações confiáveis a respeito. “O que peço é que os pesquisadores tenham dados próximos da realidade.”

CartaCapital: O senhor tem estudado a concentração de riqueza no País. Ela tem aumentado?


Fernando Nogueira da Costa: O debate sobre a concentração de riqueza no Brasil está praticamente no começo. Percebe-se que a recente distribuição da renda do trabalho é significativa em termos relativos, mas em termos absolutos a concentração ainda é muito grande. A renda média do 1% mais rico é de pouco mais de 16 mil reais, enquanto a renda média dos brasileiros é de 1,3 mil reais, o que é muito significativo, embora o crescimento da renda tenha sido maior para os que ganham menos. Em razão disso, se fala na diminuição da desigualdade, mas ela ocorre em razão da renda do trabalho, não da riqueza financeira.

CC: Passa a impressão errada?


FNC: Exatamente, passa a impressão de que vivemos uma desconcentração da riqueza, quando não é verdade.

CC: Mesmo no caso da renda, a redução da desigualdade ainda é muito tímida, não?


FNC: É tímida em termos das desigualdades, que são heranças históricas. O Brasil era o segundo país com a pior distribuição de renda do mundo no fim dos anos 1990. Em primeiro, vinha a África do Sul do Apartheid. Melhoramos no ranking, hoje o Brasil deve estar em 12º, em razão das políticas sociais, do crescimento, da formalidade no mercado de trabalho… Mas o desafio é muito grande para chegarmos a uma sociedade mais igualitária, com políticas públicas capazes de mudar a concentração de riqueza. E o desafio começa por sabermos do que falamos, pois é um problema conceitual diferente.

CC: Em que sentido?


FNC: Renda tem a ver com fluxo, é o valor agregado ao longo de um ano. Riqueza não, riqueza é um estoque acumulado ao longo não só da vida de cada pessoa, mas herdado. Então é uma riqueza que se transmite para outras gerações. O problema é extremamente complexo e no mundo todo é assim. No planeta, a tendência é haver uma grande concentração de riqueza. Como não existem dados objetivos, é preciso trabalhar com indícios. E os indícios mostram que mesmo nos paí­ses emergentes, nos BRICS, tem aumentado a concentração.

CC: E nos países centrais?


FNC: Em razão da crise houve uma certa deflação dos ativos. E aí chegamos a um ponto importante: a riqueza, em termos das divulgações que temos, é medida pelo valor de mercado, no mercado de capitais, por exemplo, e se valoriza ou se desvaloriza no dia a dia das Bolsas. Raramente o homem comum, o assalariado, tem a dimensão exata da sua riqueza. A cotação de seus ativos varia, no mercado de ações, mas também o preço do seu automóvel usado, dos imóveis. No mercado financeiro, existe a “marcação a mercado” dos bens a cada dia, mas no caso dos outros ativos, não. Então qual é a fonte de informação para medir a riqueza? Aí existe muita dificuldade. Nos países de capitalismo maduro existem alguns tipos de estatísticas. Mas o Brasil está muito atrás, embora o sistema brasileiro de gestão de estatísticas do IBGE seja de alta qualidade técnica.

CC: Não é como o Indec argentino…


FNC: Não, não é. Agora, curiosamente na mensuração da riqueza, a Argentina é o único país da América Latina com estatísticas a partir da declaração de Imposto de Renda.

CC: É um exemplo positivo então?


FNC: Neste caso, sim, e é um desafio o IBGE fazer o mesmo. E me parece que a sociedade cobra hoje, dentro do debate sobre a concentração de riqueza, que o IBGE avance nesse sentido, faça um convênio com a Secretaria da Receita Federal porque existe a fonte de dados para trabalhar, de maneira agregada evidentemente, por causa do sigilo. Mas para trabalhar com os agregados, a partir de uma estratificação, e recuperar os dados das declarações de pessoas físicas. E depois comparar com as declarações das pessoas jurídicas. O que peço é que os pesquisadores tenham dados próximos da realidade. As declarações de bens e direitos têm um viés muito claro, as pessoas declaram os bens e direitos no fim do ano, e o saldo no caso dos ativos financeiros. Os ativos de base imobiliária, que na estimativa que fiz representam cerca de 40% do total, são, porém, declarados em valores históricos, o que representa uma defasagem expressiva. Isso significa que 40% do total é subestimado. Se o Imposto de Renda permitisse a atualização no valor de mercado de determinados tipos de bens para determinado ano, aí seria mais próximo da realidade.

CC: Por que não acontece?


FNC: Existem razões para a Secretaria da Receita Federal não solicitar. Evidentemente, isso pode esconder muita riqueza, muito dinheiro frio. Se tivéssemos a declaração estratificada pelos níveis de riqueza financeira, já serviria. A minha finalidade como pesquisador é medir o potencial de funding, de fontes de financiamento de longo prazo. É importante por estarmos em um momento de mudança dos portfólios, nas carteiras de ativos e com mobilidade social. A questão é sabermos para onde vai o País. E aí voltamos aos indícios. Em um desses relatórios de riqueza mundial, o Brasil foi o país onde mais cresceu a riqueza no ano passado, levando em conta as principais nações. Houve um crescimento de 6,2% na riqueza. E poucos países registraram crescimento. A riqueza financeira desses bilionários brasileiros é de cerca de 200 bilhões de reais, mas a riqueza financeira do Brasil é de 3,8 trilhões de reais. Se tivéssemos a informação ano a ano, estratificada, serviria para acompanhar as mudanças no mercado de trabalho. E me parece que esses dados não são divulgados por falta de iniciativa. Do jeito que está, podemos levantar indícios, mas não dá para julgar bem a sociedade com base em indícios, precisamos de provas, inclusive porque o Brasil é extremamente injusto.

CC: O senhor é a favor da taxação das grandes fortunas?


FNC: É um assunto complexo, e para situações complexas não existem soluções simples. A taxação de patrimônio voltou a ser debatida mundo afora, em governos do centro para a esquerda, e que sempre volta ao debate em momentos de crise. O presidente socialista francês quer voltar a taxar com alíquota de 75%. Mas em uma economia aberta e em um mundo globalizado, esse tipo de política leva à fuga de capitais. Teremos de estudar mais a riqueza, até para bloquear as rotas de fuga.

Estudioso há décadas do sistema financeiro, o economista Fernando Nogueira da Costa recebeu em setembro um prêmio do Conselho Federal de Economia (Cofecon) pela publicação do livro Brasil dos Bancos (Edusp), interpretação crítica da história bancária brasileira. Ex-vice-presidente da Caixa Econômica Federal (2003-2007), Costa não seguiu para a iniciativa privada. Preferiu voltar à Unicamp, onde é professor do Instituto de Economia. E coleta indícios sobre a concentração de riqueza no País, que ele supõe seguir em alta, apesar da falta de informações confiáveis a respeito. “O que peço é que os pesquisadores tenham dados próximos da realidade.”

CartaCapital: O senhor tem estudado a concentração de riqueza no País. Ela tem aumentado?


Fernando Nogueira da Costa: O debate sobre a concentração de riqueza no Brasil está praticamente no começo. Percebe-se que a recente distribuição da renda do trabalho é significativa em termos relativos, mas em termos absolutos a concentração ainda é muito grande. A renda média do 1% mais rico é de pouco mais de 16 mil reais, enquanto a renda média dos brasileiros é de 1,3 mil reais, o que é muito significativo, embora o crescimento da renda tenha sido maior para os que ganham menos. Em razão disso, se fala na diminuição da desigualdade, mas ela ocorre em razão da renda do trabalho, não da riqueza financeira.

CC: Passa a impressão errada?


FNC: Exatamente, passa a impressão de que vivemos uma desconcentração da riqueza, quando não é verdade.

CC: Mesmo no caso da renda, a redução da desigualdade ainda é muito tímida, não?


FNC: É tímida em termos das desigualdades, que são heranças históricas. O Brasil era o segundo país com a pior distribuição de renda do mundo no fim dos anos 1990. Em primeiro, vinha a África do Sul do Apartheid. Melhoramos no ranking, hoje o Brasil deve estar em 12º, em razão das políticas sociais, do crescimento, da formalidade no mercado de trabalho… Mas o desafio é muito grande para chegarmos a uma sociedade mais igualitária, com políticas públicas capazes de mudar a concentração de riqueza. E o desafio começa por sabermos do que falamos, pois é um problema conceitual diferente.

CC: Em que sentido?


FNC: Renda tem a ver com fluxo, é o valor agregado ao longo de um ano. Riqueza não, riqueza é um estoque acumulado ao longo não só da vida de cada pessoa, mas herdado. Então é uma riqueza que se transmite para outras gerações. O problema é extremamente complexo e no mundo todo é assim. No planeta, a tendência é haver uma grande concentração de riqueza. Como não existem dados objetivos, é preciso trabalhar com indícios. E os indícios mostram que mesmo nos paí­ses emergentes, nos BRICS, tem aumentado a concentração.

CC: E nos países centrais?


FNC: Em razão da crise houve uma certa deflação dos ativos. E aí chegamos a um ponto importante: a riqueza, em termos das divulgações que temos, é medida pelo valor de mercado, no mercado de capitais, por exemplo, e se valoriza ou se desvaloriza no dia a dia das Bolsas. Raramente o homem comum, o assalariado, tem a dimensão exata da sua riqueza. A cotação de seus ativos varia, no mercado de ações, mas também o preço do seu automóvel usado, dos imóveis. No mercado financeiro, existe a “marcação a mercado” dos bens a cada dia, mas no caso dos outros ativos, não. Então qual é a fonte de informação para medir a riqueza? Aí existe muita dificuldade. Nos países de capitalismo maduro existem alguns tipos de estatísticas. Mas o Brasil está muito atrás, embora o sistema brasileiro de gestão de estatísticas do IBGE seja de alta qualidade técnica.

CC: Não é como o Indec argentino…


FNC: Não, não é. Agora, curiosamente na mensuração da riqueza, a Argentina é o único país da América Latina com estatísticas a partir da declaração de Imposto de Renda.

CC: É um exemplo positivo então?


FNC: Neste caso, sim, e é um desafio o IBGE fazer o mesmo. E me parece que a sociedade cobra hoje, dentro do debate sobre a concentração de riqueza, que o IBGE avance nesse sentido, faça um convênio com a Secretaria da Receita Federal porque existe a fonte de dados para trabalhar, de maneira agregada evidentemente, por causa do sigilo. Mas para trabalhar com os agregados, a partir de uma estratificação, e recuperar os dados das declarações de pessoas físicas. E depois comparar com as declarações das pessoas jurídicas. O que peço é que os pesquisadores tenham dados próximos da realidade. As declarações de bens e direitos têm um viés muito claro, as pessoas declaram os bens e direitos no fim do ano, e o saldo no caso dos ativos financeiros. Os ativos de base imobiliária, que na estimativa que fiz representam cerca de 40% do total, são, porém, declarados em valores históricos, o que representa uma defasagem expressiva. Isso significa que 40% do total é subestimado. Se o Imposto de Renda permitisse a atualização no valor de mercado de determinados tipos de bens para determinado ano, aí seria mais próximo da realidade.

CC: Por que não acontece?


FNC: Existem razões para a Secretaria da Receita Federal não solicitar. Evidentemente, isso pode esconder muita riqueza, muito dinheiro frio. Se tivéssemos a declaração estratificada pelos níveis de riqueza financeira, já serviria. A minha finalidade como pesquisador é medir o potencial de funding, de fontes de financiamento de longo prazo. É importante por estarmos em um momento de mudança dos portfólios, nas carteiras de ativos e com mobilidade social. A questão é sabermos para onde vai o País. E aí voltamos aos indícios. Em um desses relatórios de riqueza mundial, o Brasil foi o país onde mais cresceu a riqueza no ano passado, levando em conta as principais nações. Houve um crescimento de 6,2% na riqueza. E poucos países registraram crescimento. A riqueza financeira desses bilionários brasileiros é de cerca de 200 bilhões de reais, mas a riqueza financeira do Brasil é de 3,8 trilhões de reais. Se tivéssemos a informação ano a ano, estratificada, serviria para acompanhar as mudanças no mercado de trabalho. E me parece que esses dados não são divulgados por falta de iniciativa. Do jeito que está, podemos levantar indícios, mas não dá para julgar bem a sociedade com base em indícios, precisamos de provas, inclusive porque o Brasil é extremamente injusto.

CC: O senhor é a favor da taxação das grandes fortunas?


FNC: É um assunto complexo, e para situações complexas não existem soluções simples. A taxação de patrimônio voltou a ser debatida mundo afora, em governos do centro para a esquerda, e que sempre volta ao debate em momentos de crise. O presidente socialista francês quer voltar a taxar com alíquota de 75%. Mas em uma economia aberta e em um mundo globalizado, esse tipo de política leva à fuga de capitais. Teremos de estudar mais a riqueza, até para bloquear as rotas de fuga.

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