Esporte

Rio de Janeiro esquece seus problemas e só fala do Flamengo

Violência, letalidade policial, desemprego e dificuldades para fechar as contas: tudo ficou para trás após as glórias de Gabigol e companhia

Até o calendário é flamenguista. Um feriado na quarta, dia do embarque a Lima, seguido da Libertadores no sábado e do título brasileiro no domingo, sem jogar. Quem poderia prever?
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Desinteressados em futebol, desdenhosos do esporte, difamadores ativos do que chamam de “ópio do povo”, torcedores rivais, argentinos, “do contra” ou apenas gente que alegava “ter mais o que fazer”: todos tentaram, mas nas ruas do Rio de Janeiro, no fim de semana de 23 e 24 de novembro, foi impossível ignorar a existência do Clube de Regatas do Flamengo, não importava a estratégia assumida. Fosse ela fechar os olhos, tapar os ouvidos ou ignorar o noticiário e as redes sociais, nada parecia efetivo. Em menos de 24 horas campeão da Taça Libertadores, após 38 anos, e do Campeonato Brasileiro depois de campanha recordista, o clube e suas cores exerceram, naqueles dias, a ubiquidade que se vê em época de Copa do Mundo – ruas pintadas, carros plotados, ônibus personalizados informalmente, uniformes em cada esquina, sósias, bonecos e faixas de campeão.

Espécie de carnaval com festa de fim de ano, o desfile do time em carro aberto no Centro da cidade, durante o domingo, foi o marco maior do frenesi rubro-negro. A festa na rua contou com tudo o que grandes aglomerações na cidade reúnem, sejam elas protestos, sejam blocos carnavalescos, e, se teve choro e alegria, também rendeu violência policial. Com todas as superfícies acima do chão tomadas por torcedores, andaimes, tetos de bancas de jornal ou sacadas da Candelária, as bombas de gás lacrimogênio ao fim do cortejo não foram suficientes para suprimir a sensação de que, ao menos para os flamenguistas, o Carnaval tinha chegado mais cedo.

Que o Flamengo seja o time com a maior torcida do Brasil e, segundo pesquisa do Datafolha de novembro passado, o clube de um a cada cinco brasileiros, não há nenhuma novidade. Inédita é a campanha vitoriosa do Rubro-Negro e o alvoroço pulverizado pela cidade desde que garantiu, com goleada contra o Grêmio, a vaga para a Final da Libertadores após quase quatro décadas. A empolgação surpreendeu o produtor e conselheiro do clube David Butter, de 40 anos, que não vê nada parecido desde que se entende como fã de futebol: “Tivemos títulos com grandes festas, mas não me recordo de ver nada do tamanho daquele fim de semana”.

Com as vitórias do time do técnico Jorge Jesus, não demorou até que políticos tentassem, de alguma forma, fazer parte da campanha e cooptar a massa rubro-negra. O presidente Jair Bolsonaro chegou a afirmar que iria à Final em Lima, mas desistiu de última hora, o que não impediu que o governador fluminense, Wilson Witzel, não só estivesse presente no jogo e no trio elétrico do Centro, como prestasse homenagens aos jogadores de forma pouco usual.

Pelo Twitter, o ex-prefeito Eduardo Paes, vascaíno, disse que decretaria feriado, caso ainda estivesse no comando da cidade, o que gerou respostas do deputado federal, adversário político e torcedor rubro-negro Marcelo Freixo. O deputado federal Alexandre Frota resolveu tocar o hino do clube em sessão solene da Câmara. Mas a estratégia, segundo Butter, é mais forçada que eficaz: “É sabido que torcedor vaia até minuto de silêncio. Creio que essas tentativas não surtem tanto efeito, tamanho o descrédito que os políticos cariocas têm entre a massa”.

Com índices enormes de violência, letalidade policial, desemprego e sérias dificuldades para fechar as contas, além de quatro ex-governadores com passagens pela cadeia, o frenesi rubro-negro poderia forçar o clima de que tudo na cidade anda às mil maravilhas ou ao menos “desviar a atenção” dos grandes problemas do estado? O sociólogo e professor da Uerj, Ronaldo Helal, afirma que esse efeito, se existe, é “momentâneo”. “Se considerarmos que políticos ganham eleitores por posarem ao lado de jogador, somos elitistas por pensar que torcedores são facilmente manipuláveis e se esquecem de serviços básicos, como saúde e educação.” A volta à rotina veio poucos dias após os títulos. Soube-se que o Ministério Público do estado investiga o prefeito Marcelo Crivella por suposto esquema de recebimento de propina de empresas com créditos a receber da prefeitura.

A atmosfera de Copa do Mundo, na visão de Butter, foi inflada pelo calendário. Na quarta-feira em que o time embarcou para Lima, sede da Final da Libertadores, era feriado no Rio, permitindo que uma massa de torcedores em romaria se dirigisse ao Aeroporto do Galeão. O dia do jogo único, na tarde de um sábado, também foi capaz de proporcionar churrascos e encontros entre amigos, clima diferente dos últimos anos, quando o título geralmente era decidido em duas quartas-feiras. No domingo, além de os jogadores desfilarem pelo Centro, o clube foi campeão brasileiro com o tropeço do Palmeiras, segundo colocado, enquanto milhares de torcedores ainda estavam na rua, depois de acompanhar o trio elétrico do time, o que fez dobrarem os gritos e os fogos de artifício.

Políticos de todos os matizes tentam tirar uma casquinha do triunfo do clube de maior torcida do País

Se é inegável que as conquistas e o conveniente calendário explicam a maior parte da empolgação que invadiu a cidade, esses fatores não estão sozinhos. O elenco do Flamengo neste ano teve figuras carismáticas responsáveis por criar um clima à parte, caso do técnico Jesus e do atacante Gabriel Barbosa, o Gabigol, todos com gestos e bordões próprios. “A força que Gabigol tem com as crianças é a mesma de alguns super-heróis dos filmes”, diz Butter, que também credita essa difusão à ação do clube nas redes. “Hoje, não só o time produz conteúdo, mas os torcedores também, em grande escala, e isso engaja todos em um nível diferente dos anteriores.” E esse conteúdo, mais que os tradicionais objetivos de comemorar, também pode ter metas políticas.

Tanto Helal quanto Butter concordam que, em uma situação vitoriosa sem precedentes e com a maior torcida brasileira envolvida, todos que puderem, de dirigentes a políticos, tentarão “tirar uma casquinha” do sucesso do time, ainda mais quando o último desafio do ano se aproxima. O Mundial de Clubes que acontece no Catar começa a partir de 17 de dezembro – e os rubro-negros sonham com outro embate com o Liverpool. Mais de uma semana após o título da Libertadores e do Brasileiro, o clima de celebração geral continua, em menor grau e, tudo indica, se alongará até a estreia do time em Doha. Até lá, mais uma vez, será difícil fugir do frenesi rubro-negro.

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