Rio 2016: do outro lado do muro olímpico

Escondida por tapumes, agora olímpicos, a McLaren é um dos locais mais duros do Complexo da Maré. Quem chega pelo Galeão não vê a realidade

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Então, que comecem os Jogos Olímpicos. Que a farsa da exclusão se desmascare. Não, ela não terá seu estopim agora, apenas torna-se mais evidente, menos camuflável.

Por mais que transborde características de felicidade e completude entre feudos cariocas por recepcionar os Jogos, os da margem não celebram.

São escondidos pelos tapumes, camuflados pela indiferença, alimentados pela miséria. Estão em toda parte em qualquer canto: basta aprender a olhar que encontramos a miserabilidade humana paralela à pirotecnia carnavalesca de uma festividade que não cabe no nosso bolso, nem na nossa consciência.

Mas não nos importamos, admiramos: o transporte segregatício, a saúde seletiva, segurança partidária e excludente, show para gringo ver e brasileiro pagar. A fatura é exorbitantemente maior do que o investimento, não acreditamos no legado.


Na fala de cada entrevistado, a indiferença: mas isso não importa, não são falas do Poder, são massacrados por ele. No Museu do Amanhã, a Maré se vê no ontem que não se renova, não se transforma, que ninguém se importa. Estão abandonados atrás de tapumes que escondem a cara genuína da cidade: desigual e imoral.

Aqui promessa é paródia e facção é devoção; acreditam que é a única salvação. Mortos de possibilidades, sobrevivem em prol da perversa manutenção das hierarquias, alimentam o sistema de carne humana, barata e vulgar. Quem dispara o primeiro tiro? O nascimento, a cor da pele, a condição social. Os que financiam, vestem camisas patrióticas para bater panelas cheias de asco pelo que não compreendem, nem querem próximos.

Quem termina o serviço sujo? O novo Capitão do Mato, filho ilegítimo dos abastados à serviço da punição do escravo, que nunca se libertou da servidão, nas muitas Marés que temos. Essa maré não tem peixe: tem esgoto a céu aberto, com bica única e fome coletiva, disputando com ratos espaço e comida.

Sobrevivem da caridade de quem os detesta, da comiseração dos que vão inaugurar praças e monumentos: são os que só se alimentam de misérias. São os do álcool forte matinal para mais um dia de marginal. São bandidos não só pela única opção; mas por andarem em bando e serem apontados como os que não são como vergonhosamente queremos ser.

A resiliência ainda é contida pela necessidade de comer; quando se potencializam de revolta, descobrem que gente feita para brilhar não pode morrer de fome. Nessa quase utópica atitude, quebram a banca, desmontam o sistema. Muitos já labutam por essa descontinuidade, contestam com conhecimento e conteúdo, com dignidade de quem não aceita nem se cala.

Jogos para quem? Nesse labirinto de vielas a esgrima é a faca, hipismo é barricada contra Caveirão, as velas são contra a Maré, e apenas para iluminar barracos. A ginástica só é rítmica para se esquivar no chão da bala perdida, driblar só os carros da Linha Vermelha, quando se fatura um troco nos engarrafamentos. Golfe?! Claro, aprendem desde criança nas favelas! É o esporte favorito da criançada! Badminton? Não, obrigado, prefiro peteca! Preferimos expressão, voz, reconhecimento.


De todas modalidades, a campeã por aqui ainda é a resistência sobre-vivência.

*Bethânia Lima é estudante de Relações Públicas, Yago Gonçalves é fotógrafo e estudante de Publicidade e Propaganda e Ruberli Angelo é artista plástico e ensaísta. Todos são moradores do Rio de Janeiro

 

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