

Opinião
Retorno ao passado
Recordações dos tempos difíceis me dominam com vigor agora, na previsão de uma retomada da guerra que o mundo enfrenta contra o coronavírus


Quando a Segunda Guerra Mundial terminou, eu tinha 11 anos. Naquele momento vivia à sombra da minha mãe e na companhia do meu irmão em uma aldeia piemontesa, onde pretendíamos nos refugiar dos bombardeios que toda noite devastavam a minha cidade, Gênova.
Caímos diretamente na brasa: a aldeia de San Damiano d’Asti tornou-se um centro de guerrilha da Resistência contra os alemães e os esbirros de Mussolini, fundador da República de Saló, no norte da península, no final de 1943.
Preso em um cárcere apenínico depois de derrubado por seus próprios subordinados em julho daquele ano, o Duce retornou ao seu papel em uma Itália já dividida ao meio pela invasão das tropas aliadas e ensanguentada pela luta intestina da Resistência.
Reencontro-me em Gênova, finalmente, em julho de 1945, hóspede na casa dos meus avós paternos. A lembrança da guerra pairava no ar com seu legado de privações e sofrimentos, mesmo porque naquele período meu pai foi preso pelos fascistas. Tratou-se, porém, de um aprendizado formidável, treino para a vida.
De volta à minha cidade fui cursar o terceiro ano ginasial e a professora de Italiano, Latim, História e Geografia, notável senhora de no máximo 30 anos, brilha na minha memória. No primeiro semestre, ela nos fez ler, de fio a pavio, a Ilíada e, no segundo, a Odisseia, traduzidas por dois poetas italianos do século XVIII.
Enriquecia a leitura com o estudo da mitologia grega e outras divagações inteligentes, o que permitiu que a minha prova final escrita de Italiano tivesse o seguinte tema: “Analise a figura de Ulisses nos poemas homéricos e na Divina Comédia, no canto do Inferno em que Dante condena o Odisseu”.
Dante conta que, no seu retorno a Ítaca, Ulisses não resiste ao ócio e parte novamente para uma longa viagem para descobrir, além das Colunas de Hércules, uma nova terra, profecia da América. Um dos meus trunfos, confesso, foi a nota 9 que tirei na ocasião em um ginásio onde ninguém poderia ambicionar a nota 10.
A Itália saiu da guerra em escombros, Gênova sobretudo, severamente bombardeada. Mas surgiu daí uma potência mundial, por meio de várias ações políticas muito bem-sucedidas, pelas quais primeiro houve um plebiscito para decidir entre Monarquia e República e um pleito para uma Assembleia Constituinte exclusiva, integralmente voltada à elaboração da nova Carta ao longo de um trabalho encerrado em abril de 1948, coroado esforço pelas primeiras eleições políticas para as duas Câmaras do Parlamento.
O porto de Gênova voltou a ser o primeiro do Mediterrâneo, a cidade retomou o seu aspecto dos dias melhores, de grande ajuda para toda a Europa foi o Plano Marshall. Uma bomba americana, naturalmente desarmada, permanece na catedral como lembrança do conflito superado. Estas recordações me dominam com extremo vigor neste exato instante, na previsão de uma retomada da guerra que hoje o mundo enfrenta contra a pandemia do coronavírus.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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