Sociedade

Retirada do aplicativo Secret do ar cerceou a liberdade de expressão

Sob alegação de que Constituição proíbe o anonimato, Justiça mandou bloquear acesso a aplicativo, mas tal medida constitui censura prévia

Se mantida, a decisão que retira o Secret do ar abre um precedente negativo e que contraria os padrões internacionais
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Uma decisão da Justiça capixaba, na semana passada, voltou a suscitar o debate sobre quais são os limites do direito à liberdade de expressão. Na oportunidade, o juiz Paulo Cesar de Carvalho, da 5ª Vara Cível de Vitória, acatou pedido do Ministério Público do Espírito Santo (MP-ES), que protocolou uma ação civil pública requerendo que o aplicativo de mensagens anônimas Secret fosse retirado das lojas online do Google e da Apple. A medida atingiu ainda o aplicativo Crypitic, da Microsoft, que tem funcionamento similar.

Lançado na internet em janeiro deste ano, o Secret é um aplicativo que permite que usuários postem conteúdo de forma completamente anônima, e passou a se disseminar pelo Brasil neste mês. No entanto, com a popularização, também surgiram diversas reclamações de usuários que se disseram ofendidos com algumas das informações circuladas.

Foi justamente este último fenômeno que levou o MP-ES a pedir à Justiça que bloqueasse o aplicativo no país. Para isso, o órgão baseou-se no artigo 5º da Constituição Federal, que determina que “é livre a manifestação de pensamento, sendo vedado o anonimato”.

Na ação civil pública, o promotor Marcelo Zenkner, do MP-ES, afirmou: “A ordem constitucional ainda assegura ‘o direito de resposta proporcional ao agravo, além de indenização por dano material moral ou à imagem’ (artigo 5º. inciso V), ou seja, o anonimato mostra-se absolutamente incompatível com tais premissas balizadoras de nosso sistema”.

A tese foi aceita pelo juiz Paulo Cesar de Carvalho, responsável pelo julgamento do caso, que defendeu a “liberdade com responsabilidade” na decisão que mandou tirar o aplicativo do ar. “Em outras palavras, é consagrada com grande amplitude a liberdade de manifestação, mas, por outro lado, estabelece-se que aqueles que atuarem de forma abusiva no exercício do seu direito, e com isso causarem danos a terceiros, podem ser responsabilizados por seus atos”, argumentou. E concluiu: “A proibição do anonimato destina-se exatamente a viabilizar esta possibilidade de responsabilização, por meio da identificação do autor de cada manifestação”.

O que torna a decisão ilegal

Apesar da existência de um artigo constitucional que veda o anonimato, é necessário interpretar o episódio de acordo com o próprio espírito da Constituição, e ainda dos padrões internacionais e boas práticas relacionadas à proteção da liberdade de expressão.

Em primeiro lugar, um dos princípios básicos da liberdade expressão é o de que a responsabilização de alguém por conta de uma ofensa só pode ocorrer a posteriori – do contrário, estaremos diante de uma censura prévia.

O próprio Marco Civil da Internet, que entrou em vigor em junho, também pode servir de base de argumento para mostrar que a decisão de retirar o Secret do ar foi ilegal. Em seu artigo 19, afirma: “Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário”.

Dessa forma, comentários ofensivos à honra veiculados no Secret devem ser discutidos na Justiça, e somente após uma ordem judicial é que pode haver a remoção daquele conteúdo, e apenas especificamente do conteúdo ofensivo. Imagine, por exemplo, tirar um site inteiro do ar em razão de um único trecho ofensivo – é exatamente esta lógica a empregada no caso Secret.

Além do mais, o fato de o aplicativo garantir o anonimato dos usuários não significa que ele não possa identificar de fato quem postou alguma mensagem ofensiva e caluniosa. Pelos números de IPs e de celular, isso seria facilmente possível, uma vez que, novamente, segundo o Marco Civil da Internet, em seu artigo 15, “os provedores de aplicações de internet devem manter “registros de acesso a aplicações de internet, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 6 (seis) meses”.

Assim, o anonimato seria garantido apenas entre os usuários, mas não para a Justiça, quando esta requisitasse a identidade de um autor de uma postagem ofensiva.  Esta possibilidade desconstrói o argumento usado pelo juiz Paulo Cesar de Carvalho, que citou a impossibilidade de responsabilização a posteriori para embasar sua decisão.

Há que se lembrar ainda que a CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos), órgão ligado à OEA (Organização dos Estados Americanos), da qual o Brasil é membro, ressalta, em seu relatório “Liberdade de Expressão e Internet” , que o direito à liberdade de pensamento e expressão não pode ser exercido plenamente senão em um espaço completamente livre de intervenções externas. Segundo o relatório, “os Estados devem evitar a implementação de qualquer medida que restrinja, de modo arbitrário ou abusivo, a privacidade dos indivíduos (artigo 11 da Convenção Americana), entendida em sentido amplo como todo espaço de intimidade e anonimato” (“Liberdade de expressão e internet”, da Relatoria Especial para Liberdade de Expressão Comissão Interamericana de Direitos Humanos, 2013, p. 61).

Nesse sentido, o anonimato na internet é essencial para que os indivíduos possam formar livremente suas opiniões, buscar e receber informações sem serem forçados a se identificar ou revelar suas fontes. O anonimato é ainda fundamental em casos de testemunhas e defensores de direitos humanos que tenham feito denúncias de interesse público e que necessitem manter sua identidade oculta para não sofrerem retaliação.

Se mantida, a decisão que retira o Secret do ar abre um precedente negativo e que contraria os padrões internacionais, visto que permite a responsabilização de provedores e plataformas online por conteúdos publicados por terceiros, bem como permite o bloqueio de plataformas que possibilitam a troca de conteúdo de forma anônima.

É bastante evidente que a profusão da internet e suas infinitas formas de interação e trânsito de informação criaram grandes desafios a magistrados do mundo todo. Ainda assim, a liberdade de expressão é um direito secular, conquistado com muitas lutas, e deve ser preservado pela importância central que tem em qualquer sociedade democrática. Qualquer medida radical – como o bloqueio de toda uma plataforma digital de interação – só pode ser empregada em casos extremamente excepcionais e amparada em sólida base legal. E não é esse o caso em questão.

*Paula Martins é advogada e diretora-executiva da ARTIGO 19, uma organização internacional de direitos humanos que atua na defesa e promoção da liberdade de expressão e do acesso à informação pública.

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