Sociedade

Relatórios mostram um país destruidor e genocida no campo e a floresta

Publicações da Pastoral da Terra e do Instituto Socioambiental revelam aumento da violência contra indígenas, quilombolas e trabalhadores do campo

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Há uma nuvem pesada no horizonte, escura, armando uma tempestade. “Escutamos aquele silêncio que nos preocupa muito, porque nos faz lembrar massacres e momentos trágicos: latifúndio age assim”, afirma Ayala Ferreira, liderança do MST no Pará.

No “acampamento pedagógico da juventude Oziel Alves Pereira”, organizado há 11 anos pelo MST na Curva do S, local do Massacre de Eldorado dos Carajás, de 1996, há uma apreensão no ar. E os dados da crescente violência confirmam o temor: estamos diante de uma sucessão de mortes, associadas com impunidade e o avanço do latifúndio.

Nesta segunda-feira 17, aniversário de 21 anos do massacre, dia internacional da luta pela terra, duas organizações que trabalham no campo e na floresta – a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Instituto Socioambiental (ISA) – apresentam trabalhos de compilação de dados fundamentais para se conhecer a violenta conjuntura que o País atravessa.

Na 32ª edição de seu Caderno Conflitos no Campo, a CPT mostra que todas as formas de violência no campo aumentaram substancialmente no ano passado. Se em 2015 ocorreram 50 assassinatos, em 2016 foram 61. O número de pessoas ameaçadas de morte subiu de 144 para 200, ao mesmo tempo em que entrou em colapso o programa de proteção do governo federal.

Aumentaram em 25% as tentativas de assassinato (foram 74) e explodiu o número de agressões (de 187 para 571) e uma das maiores preocupações: a criminalização. Em 2015, 80 ativistas foram presos, número que chegou a 228 no ano passado. Com destaque para a criminalização, a invasão pela polícia civil de São Paulo da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) do MST, em Guararema (SP), no final do ano passado.

A Amazônia continua sendo a região mais violenta, concentrando 80% das mortes, sobretudo em Rondônia, no segundo ano do banho de sangue na região de Buritis. Para Leonardo Boff, há quatro razões: “O nosso passado colonial violento; o genocídio indígena; a escravidão, ‘a mais nefasta de todas’; e a Lei de Terras que excluiu os pobres e afrodescendentes do acesso à terra, e os entregou ‘ao arbítrio do grande latifúndio, submetidos a trabalhos sem garantias sociais'”.

O foco da violência também atingiu em maior número indígenas e quilombolas, o que acende um sinal de alerta para as falas neofascistas de Bolsonaro e de outros deputados ruralistas. Na Bahia foram mortas duas lideranças quilombolas (Antonio Gonçalves e Alexsandro dos Santos Gomes), o indígena Luizão Tupinambá e o professor da UFBA, aliado da luta quilombola, Marcus Vinicius de Oliveira Silva. No Maranhão, foram quatro lideranças indígenas e duas lideranças quilombolas assassinadas.

No país do “crime de Mariana”, no holocausto ecológico do Rio Doce, triplicaram nos últimos seis anos os conflitos pela água. Destaque para o brutal e covarde assassinato de Nilce de Souza Magalhães em janeiro do ano passado. “Nicinha” era liderança do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), em Rondônia, e lutava por direitos das populações atingidas pela usina Jirau, do Complexo Madeira. 

Aonde a água é escassa, no sertão, a grande fronteira agrícola da soja, aumentaram 300% os conflitos no que colonizadores ruralistas separatistas chamam de Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia).

Brasil Socioambiental em conflito

O ISA lança a 12ª edição do livro Povos Indígenas no Brasil destacando uma extraordinária entrevista com Ailton Krenak. O povo Krenak que foi “divorciado do corpo do rio”, sofre com a falta de perspectiva de voltar a ter água para poder existir. “Quando a atividade de abrir a estrada de ferro Vitória-Minas se iniciou, foi o fim da vida livre dos Krenak no Rio Doce”, relata Ailton.

O líder indígena aponta o descaso genocida da Vale-Samarco e, afirma, “não tem reparação”: “O capital está assolando o planeta”. Na capa desta edição do livro uma foto homenageia o líder indígena do Xingu Pirakumã Yawalapiti, falecido em 2015.

Um outro efeito brutal do avanço do capital sobre o planeta é apresentado nos dados precisos produzidos pelo ISA sobre os efeitos de Belo Monte, entre 2011 e 2016. Com o avanço da construção da usina, barrou-se o Xingu, as terras indígenas estão desprotegidas, ribeirinhos foram deslocados, a cidade de Altamira transformada em um caos, sem saneamento, com hospital fechado, aumento da violência…

Esse avanço que atinge populações e a natureza é ainda mais violento contra as mulheres, e nesse sentido, o Povos Indígenas do Brasil do ISA inova ao iniciar o volume com o pensamento de doze mulheres indígenas, recolhido por pesquisadoras e pela equipe do instituto.

Também têm destaque as reflexões produzidas por mulheres aliadas à luta dos povos indígenas, como Marta Azevedo, ex-presidente da Funai, que escreve recomendações para o próximo Censo de 2020 (as mudanças propostas pelo atual governo Temer visam excluir dados fundamentais para se compreender a população brasileira e as desigualdades); a linguista Bruna Franchetto, sobre as iniciativas indígenas de fortalecer as línguas; e a advogada indigenista Erika Yamada, sobre a necessidade da regulamentação do direito de consulta.

Todas elas, além de outras pesquisadoras e pesquisadores comprometidas e comprometidos, escrevem nessa edição. Coletivamente, a equipe de edição do ISA escreveu um texto fundamental em defesa dos direitos indígenas constitucionais, cujo ataque “aprofunda-se no governo Temer”.

Nesses cinco anos de documentação do ISA, também se destaca o aumento da pressão e da exposição a riscos e a vulnerabilização dos povos indígenas que vivem em isolamento, um tema que tem sido abordado recorrentemente nessa coluna.

No último corte orçamentário da Funai, algumas Frentes de Proteção Etnoambiental foram colocadas em iminência de serem desativadas, o que acende o alerta do risco de genocídios iminente.

O indigenista da Funai Fabricio Amorim escreve dois artigos importantes sobre os processos de contatos e conflitos no Vale do Javari e os desafios da ação oficial de proteção aos povos indígenas isolados.

E Elias Bigio, ex-coordenador da área na Funai, alerta para a extrema vulnerabilidade dos indígenas de um povo que fala uma língua Tupi Kawahiwa, no Norte do Mato Grosso, e está em fuga permanente das ações genocidas de grileiros e madeireiros, apoiados por ruralistas, como o ex-deputado José Riva.

Bigio relaciona a forte campanha contra os índios na região ao risco da destruição dos vestígios da ocupação e até à morte dos indígenas – que significaria a execução completa do genocídio.  

Cinema e luta na Amazônia

Na “Curva do S”, no Pará, aconteceu esse ano o III FIA-Cinefront, festival internacional de filmes sobre ecologias e lutas sociais, uma ação de extensão da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), em parceria com movimentos sociais, e do qual sou curador. O diretor homenageado esse ano foi Jorge Bodanzky. Em Marabá, na aldeia Akrantikatejê, do povo Gavião, e na Curva do S, ele mostrou pela primeira vez na região alguns de seus trabalhos clássicos.

Iracema, uma transa amazônica, foi projetado oficialmente pela primeira vez, em Marabá, onde foi filmado 43 anos atrás, numa sessão apoteótica no Cine Marrocos, na Sexta-Feira Santa. No Sábado de Aleluia, no acampamento da juventude do MST na “Curva do S” da estrada PA 150, onde ocorreram sessões educativas, ele apresentou o documentário A Igreja dos Oprimidos.

Comentado pelo professor Airton Pereira e pela juventude presente, o filme trouxe a memória das décadas de violência na região. Na posse da chapa do sindicato dos trabalhadores rurais de Conceição do Araguaia em 1985, a sina da morte foi registrada numa imagem: Oneide segurava a foto de seu esposo morto, Raimundo Ferreira Lima (Gringo), assassinado em 1980, e no palco estavam imagens de João Canuto (assassinado em 1985),  Expedito Ribeiro (assassinado em 1991) e Felipinho, das ligas camponesas, assassinado poucos anos atrás…

“Esse filme era a minha infância”, disse Maria Raimunda, liderança do MST no Pará. “E agora continuamos a viver essa angústia da morte e da violência”.

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