Sociedade

Quem são os culpados pelo brutal ataque aos Pataxó Hãhãhãi na Bahia?

Quem, senão o Estado, tem o dever de garantir a integridade física do povo Pataxó Hãhãhãi e de investigar, e punir, os responsáveis pela formação e ação da milícia rural?

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A cena lembrava um ataque da Ku Klux Klan. No último domingo 21, a barbárie no campo ganhou mais um exemplo chocante. Duas pessoas indígenas foram jogadas no chão e cercadas por fazendeiros na Bahia. Ele, um homem portando um cocar, ela, uma mulher segurando o maracá em riste com o cotovelo apoiado ao chão. O homem era o cacique Nailton Muniz, liderança política histórica do povo Pataxó Hãhãhãi. A mulher era sua irmã Maria de Fátima Muniz, conhecida como Nega Pataxó, pajé, cantora e rezadeira do seu povo. Naílton ficou gravemente ferido. Nega Pataxó morreu.

Ambos haviam sido alvejados por tiros, estavam feridos e, junto a outras pessoas indígenas, foram também espancados por uma turba ruralista autointitulada “Invasão Zero”.

O circo de crueldade foi armado pelas redes sociais. No dia anterior, um card com a marca do movimento já circulava pelas redes e grupos de WhatsApp, com uma convocação geral para a dita “reintegração de posse” da fazenda, ocupada pelos indígenas no mesmo dia.

Diante dos fatos, fazemos a seguinte indagação: quem comanda a força de segurança pública nas regiões sul, sudoeste e extremo sul da Bahia? Quem dá ordens e orienta as ações da polícia militar na região? Grupos armados de civis com apoio de policiais militares podem, sem nenhum mandado legal, realizar reintegração de posse, na Bahia?

A milícia Invasão Zero tem como fundador e coordenador nacional Luiz Uaquim, conhecido proprietário de terras no sul da Bahia, inclusive de “fazendas” na Terra Indígena Tupinambá de Olivença.

A violência da milícia ruralista, que ganhou destaque diante da tragédia do último domingo, mostra a impunidade e o descaso, absurdos e inaceitáveis, vigentes. Em uma nota pública, a Defensoria Pública da União, a Defensoria Pública do Estado da Bahia e o Ministério Público Federal afirmam que há mais de um ano têm alertado as autoridades sobre a necessidade de adoção de medidas urgentes para interromper os violentos acontecimentos.

O brutal massacre que ceifou a vida de dona Nega Pataxó e atingiu gravemente o seu irmão ocorre um mês após o assassinato do jovem cacique Lucas Kariri-Sapuyá, ocorrido na Terra Indígena Caramuru-Paraguassu, no sul da Bahia, onde também viviam Nailton e Nega. Um levantamento feito pelo Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia, o MUPOIBA, e pela Associação Nacional de Ação Indigenista expõe a dimensão da barbárie em curso nesse território indígena, que foi regularizado em 2012, após décadas tramitando no Supremo Tribunal Federal: 31 pessoas assassinadas, sendo 8 mortes ocorridas no último ano, incluindo Lucas e dona Nega.

O longo sofrimento dos Pataxó Hãhãhãi havia tido grande repercussão com a morte trágica de Galdino Jesus dos Santos, assassinado, de forma brutal, em Brasília, em 1997, e que também chocou o Brasil. Mas a escalada de violência não cessou.

Pesquisas realizadas junto aos indígenas dessa região mostram que a luta, a resistência e a “trajetória insurgente” vem de muitos anos, para usar expressão do último livro da antropóloga da Universidade Federal da Bahia, Maria Rosário de Carvalho. Essa luta marcou o século XIX e atravessou todo o século XX, até as retomadas e a regularização fundiária entre o início dos anos 1980 e a decisão final do STF, em 2012, de acordo com pesquisa da antropóloga Jurema Machado, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.  Não devem, pois, ser interpretados como força de expressão os relatos indígenas indignados, em vídeos que circulam nas redes, relatando os 500 anos de opressão e luta. Acontece que, nesse longo período histórico, a situação tem se agravado e a vulnerabilidade aumentado, notadamente nos últimos anos.

O funeral de Nega foi acompanhado pela ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, a deputada federal Célia Xakriaba e o coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, Dinamam Tuxá. Os três, em seus pronunciamentos, enfatizaram o impacto da tese racista do “Marco Temporal” no acirramento da posição anti-indígena. O “Marco Temporal”, que visa impedir o reconhecimento da ocupação tradicional dos territórios indígenas, voltou à pauta como um genocídio legislado no congresso, e estará em discussão no judiciário neste ano.

Mas há outros aspectos que chamam a nossa atenção, como pesquisadores vinculados a universidades federais na Bahia e que estudam o tema: a impunidade, a usual conivência da polícia militar baiana com a violência, a desestruturação dos laços de convivência e solidariedade sociais e a presença de uma organização miliciana no campo.

A tragédia em curso na Terra Indígena Caramuru-Paraguassu requer uma firme e pronta intervenção, como estão clamando os indígenas em seus comunicados. A impunidade dos vários assassinatos tem feito, em um círculo vicioso conhecido, crescer a violência. Quem poderá negar que a impunidade dos pistoleiros e dos mandantes que ceifaram, covardemente, a vida do cacique Lucas em frente ao seu filho, em 21 de dezembro, tenha servido de estímulo para os 200 ruralistas organizarem um encontro e somarem esforços numa operação que lembra as mais bárbaras “expedições punitivas”, fora de qualquer controle social e político?

As falas e ações do governador da Bahia subsequentes aos crimes não aludem à presença, nas várias cenas criminosas, da Polícia Militar da Bahia. Tampouco, até o momento, foram seguidas por qualquer investigação sobre as ocorrências. Essa atitude pouco incisiva tem causado espanto e indignação. Boa parte desse espanto e indignação é proveniente do fato de que este mesmo governador declare ter origem indígena e proclame estar na linha de frente da defesa dos direitos dos povos indígenas, na Bahia.

Quem, afinal, senão o Estado, tem o dever de garantir a integridade física do povo Pataxó Hãhãhãi e de investigar, e punir, os responsáveis pela formação e ação da milícia rural, incluídos eventuais agentes do mesmo Estado?

Por outro lado, é imperativo referir, como um contraponto à barbárie, ao grande reconhecimento que tem sido concedido aos saberes e talentos dos Pataxó Hãhãhãi por segmentos sociais expressivos da sociedade brasileira, a exemplo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que outorgou aos irmãos Nailton e Maria Mayá Muniz o título de Doutor por Notório Saber, e da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que tem em seu corpo docente Mayá Muniz como professora visitante. A artista Olinda Yawar, Pataxó Hãhãhã e Tupinambá, tem obras expostas em coleções dos principais museus do Brasil, tais como o MASP e a PINACOTECA. Outros jovens talentosos igualmente apoiam-se na ancestralidade e na luta, mas têm o futuro ameaçado.

A própria Nega era também amplamente reconhecida por suas ações político-rituais. Não é de estranhar que fosse irmã de Nailton e Mayá, e filha da grande líder religiosa Lucília Francisca Muniz. Nascidos e criados fora do território tradicional em função do esbulho da Terra Indígena, Mayá, Nega e mais 7 irmãos têm memórias desse período permeadas pela força ritual de Lucília. Mesmo alijada da terra e do convívio cotidiano com outros parentes, a mãe realizava pequenos rituais domésticos, como uma maneira de criar e cultivar nos filhos o pertencimento e o conhecimento de quem eles eram. Esses rituais envolviam um fogo à lenha, o uso do cachimbo e do tabaco, cantos e orações. Herdaram da mãe a força do ritual e a consciência do direito, que se fortaleceu através da importante atuação da família na retomada da Fazenda São Lucas, em 1982, que marca o início dos ciclos de retomadas do Povo Pataxó Hãhãhãi, e nas três décadas que seguiram à reconquista do território.

O assassinato e a perda de lideranças como Nega, como Lucas, são golpes cruéis e dolorosos numa larga história de violências, mas certamente não irá aplacar a determinação do povo Pataxó Hãhãhãi na luta por justiça, em defesa de seu território e de sua existência.

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