Sociedade

O círculo vicioso da desigualdade

Ainda estamos entre os países em que os pobres têm a menor participação na produção econômica nacional e os ricos, a maior

Moradores da Favela do Moinho, localizada sobre o Viaduto Orlando Murgel no centro da capital paulista, derrubam parte de um muro de contenção que circunda a comunidade
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O Brasil nunca se caracterizou por ter uma boa distribuição de renda. Fragilizado nesse quesito e como consequência do projeto econômico da ditadura civil-militar, o país chegou a ser o recordista mundial em concentração de renda. A frase de efeito da ditadura, “é preciso primeiro aumentar o ‘bolo’, para depois reparti-lo”, visava, na verdade, legitimar o aumento da concentração de renda e não ilustrar uma relação de causa e efeito – o bolo só cresce se estiver concentrado. Até mesmo, porque sendo o bolo pequeno, o melhor a fazer é dividi-lo de forma muito criteriosa para evitar desperdícios.

Depois do fim da ditadura e com alguns sobe e desce, a nossa distribuição de renda só voltou a apresentar alguma melhora a partir do final da década de 1990 e, em especial, ao longo da década de 2000. Essa redução da concentração de renda foi possivelmente propiciada pela instituição de vários benefícios sociais a partir da Constituição de 1988, pelos programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, pelo aumento real do salário mínimo, pela retomada do crescimento da renda per capita, pelo crescimento do emprego, principalmente do emprego formal, e por vários outros fatores. Entretanto, apesar dessa pequena melhora, ainda estamos entre os países em que os pobres têm a menor participação na produção econômica nacional e os ricos, a maior.

No Brasil, em média, cada um dos membros dos 10% mais ricos gasta em uma semana o mesmo que cada um dos 10% mais pobres, também em média, ganha e gasta durante todo um ano, ou seja, uma relação de renda média entre mais ricos e mais pobres da ordem de 50. Apenas para comparação: países como Paquistão, Egito, França, Índia, Ruanda, Vietnam ou Finlândia, os 10% mais ricos ganham entre cinco e dez vezes mais do que os 10% mais pobres. (Essa lista não foi escolhida a dedo, composta pelos países menos desiguais, mas, sim, escolhida para mostrar que desigualdade não é necessariamente uma característica inescapável ou imposta pela cultura, religião, região geográfica, nível de industrialização do país etc.: desigualdade é alguma coisa que cada país constrói ou não, fruto de sua realidade interna.) Mesmo nos EUA, pátria-mãe do liberalismo, a mesma relação é da ordem de “apenas” 15 vezes.

A distribuição de renda é um indicador fortemente correlacionado com muitos outros indicadores sociais, como expectativa de vida, mortalidade infantil, criminalidade, gravidez na adolescência, desempenho escolar etc. Quando as demais condições são equivalentes (como a renda per capita, as características culturais, os condicionantes geopolíticos etc.), países com melhores distribuições de renda apresentam melhores indicadores sociais do que aqueles mais desiguais. Um TED Talk que ficou bastante popular e que vale a apena ser visto (How economic inequality harms societies – Como a distribuição de renda prejudica as sociedades – http://www.ted.com/talks/richard_wilkinson.html), não deixa dúvidas que é a melhor distribuição de renda o fator responsável por melhores ambientes sociais nos diversos países.

Desigualdade de renda leva a desigualdade na educação. Uma das consequências sociais da concentração de renda é na educação recebida por uma pessoa. No Brasil, a qualidade e a quantidade de educação formal recebida por uma criança ou um jovem é quase totalmente dependente de sua condição social e econômica. Assim, entre os 20% mais pobres (grupo formado por pessoas cujas rendas domiciliares per capita estão abaixo de R$ 300 por mês, aproximadamente, a valores de 2013) a conclusão do ensino fundamental é rara exceção: a regra é deixar o sistema educacional antes dos 8 ou 9 anos obrigatórios. No outro extremo, dos 20% mais ricos, a conclusão do ensino superior é a regra. Conclusões: a nossa péssima distribuição de renda está produzindo uma população com enorme desigualdade educacional e fazendo com que um também enorme contingente deixe a escola com um nível de formação que, já hoje, seria insuficiente para garantir o pleno exercício da cidadania ou a obtenção de uma atividade econômica pelo menos razoável.

Medir a diferença educacional em cifrões pode ajudar a perceber quão grande e grave é a desigualdade educacional no Brasil. O investimento educacional entre aqueles que sequer concluem o ensino fundamental, considerando os valores atuais do Fundeb, pode não atingir R$ 20 mil ao longo de toda a vida. Enquanto isso, nos grupos mais favorecidos, apenas os investimentos escolares, que se iniciam já na primeira infância e duram até pelo menos o final de um curso superior, pode chegar perto de meio milhão de reais ou mesmo ultrapassar esse valor. Se forem adicionados os investimentos voltados à complementação educacional fora das escolas, como cursos de línguas, atendimento psicológico, viagens culturais, atividades esportivas, aulas particulares, materiais educacionais etc., coisas comuns entre os contingentes mais favorecidos e inexistentes nos grupos mais pobres, os valores acumulados na educação dos mais ricos ao longo da vida seriam ainda maiores.

 

Fechando o círculo vicioso. Assim como a escolarização de uma pessoa depende de sua renda, a renda de uma pessoa depende de sua escolarização. Há muitas informações estatísticas que mostram que (e quanto) a renda de uma pessoa cresce com seu nível de escolarização. Por exemplo, segundo dados do IBGE, trabalhadores com nível superior ganham, em média, três vezes mais do que trabalhadores sem nível superior e pelo menos seis ou sete vezes mais do que aqueles que sequer concluíram o ensino fundamental.

É fechado, então, o círculo vicioso: nosso sistema educacional é muito desigual por causa da combinação da nossa absurda concentração de renda com o fato que a educação é uma mercadoria à qual cada um tem acesso segundo suas possibilidades econômicas; quando as pessoas deixam as escolas e ingressam na força de trabalho do país, a desigualdade educacional se transformará em desigualdade de renda.

Se esse círculo vicioso não for rompido, permaneceremos entre os países mais desiguais do mundo, uma vez que os mecanismos de redistribuição de renda que nos tiraram da pior posição são incapazes de ir além de certos limites e todos os problemas sociais criados por essa desigualdade estarão presentes no futuro. É esse o caminho que seguiremos?

 

Otaviano Helene é professor no Instituto de Física da USP, ex-presidente da Associação dos Docentes da USP, ex-presidente do INEP/MEC

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