Sociedade

Palavras bonitas escondem desprezo à mulher

O que o discurso “a favor da vida” dos que são contra o direito ao aborto realmente significa

Participante de marcha pró-vida no Rio de Janeiro, em 3 de maio
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Muitas vezes, não é preciso de um “vagabunda” ou “mereceu ser estuprada” ou outras expressões agressivas para demonstrar o desprezo e ódio que se sente pelas mulheres.

Muitas vezes, palavras bonitas, aparentemente amigáveis, fazem muito bem esse trabalho de transmitir o quanto a nossa vida não vale nada.

Entendi isso ao passar, por acaso, no meio de uma manifestação “pró-vida” (pessoas que são contra o direito ao aborto) no último domingo.

Atravessei a manifestação o mais rápido que consegui, tentando desviar das senhorinhas simpáticas e sorridentes que tentavam nos abordar para entregar panfletos ou conseguir assinaturas para apoiar o pavoroso Estatuto do Nascituro. Uma das moças tentou me entregar um feto de plástico. Terrorismo? Não, imagina.

Já não tive tanto êxito em escapar das palavras que eram repercutidas pelo carro de som: “Somos a favor da vida, queremos o Estatuto do Nascituro para proteger a vida da criança e da mamãe!” 

Estremeci. O tom de “carinho” dessas palavras apenas deixava mais sinistra a mensagem que elas continham. “Mamãe”, elas diziam, em vez de “mulheres”. “Mamãe”, elas diziam, sutilmente impondo que é este o destino da mulher que engravida, ainda que ela não queira manter a gravidez. “Mamãe”, elas diziam, como se parir fosse afinal nosso único propósito como mulheres.

A favor da vida, diziam as vozes e estampas de camisetas. Palavras bonitas, amigáveis, bastante generosas. Afinal, como alguém poderia ser contra a vida?

Justamente por isso o discurso “a favor da vida” é tão perverso. Porque ignora, muito convenientemente – de forma consciente ou não – que a proibição do aborto só serve para condenar mulheres à morte, e não serve em nada, absolutamente nada, para proteger a vida dos fetos.

Se fossem tão a favor da vida como dizem, pensariam nas mulheres que morrem em abortos clandestinos. Se fossem tão a favor da vida como dizem, estariam lutando para que as mulheres que abortam tenham o atendimento adequado no sistema de saúde, nos casos já previstos por lei. Se fossem tão a favor da vida, não estariam negando o direito da mulher ao próprio corpo, o direito básico e fundamental para o reconhecimento da nossa humanidade.

Ou ainda, se fossem tão a favor da vida, estariam cada um cuidando da sua, em vez de tentar impor aos outros suas crenças. É contra o aborto? Não aborte. Simples.

Mas se dizem “a favor da vida” apenas porque soa melhor do que dizer a verdade: que são contra a liberdade de escolha da mulher. 

Participante de marcha pró-vida no Rio de Janeiro Participante de marcha pró-vida no Rio de Janeiro, em 3 de maio (Crédito Facebook/Movimento Nacional da Cidadania pela Vida Brasil sem Aborto)Por isso gostam tanto de fetos, a ponto de fazer réplicas de plástico para distribuir pelas ruas. Fetos não escolhem. É fácil defender quem não consegue fazer escolhas. Difícil é defender a vida de pessoas já formadas, livres, que fazem escolhas, muitas vezes diferente daquilo que acreditamos.

Disfarçar as reais intenções de controle da vida mulher em palavras bonitas é bastante efetivo, não só no caso do direito ao aborto. No entanto, esse em especial é um dos casos mais nocivos.

Porque encobre a realidade trágica de morte de mulheres que são empurradas para a clandestinidade. Porque tenta substituir essa realidade por um cenário de fantasia e algodão doce em que é possível simplesmente impedir que mulheres abortem.

(Por favor, acordem: não existe a possibilidade de banir o aborto, de impedir que ele aconteça. Simplesmente não há. As mulheres não vão parar de abortar, se elas já abortam mesmo contra a imposição religiosa e do Estado, mesmo enfrentando o risco de morte. Nada vai impedi-las de abortar, mas se o aborto permanecer ilegal, elas não vão parar de morrer.)

O discurso “bonito” de ser “a favor da vida” também é perverso porque vilaniza qualquer pessoa que se oponha a ele. Como se, por lutar pelos direitos da mulher, fôssemos monstros “contra a vida”, embora seja justamente em favor da vida que defendemos o direito ao aborto legal e seguro. 

A diferença é que lutamos por uma vida plena, uma vida cidadã, uma vida com direito à escolha – e não tentamos disfarçar isso com outras palavras. Se for para ter uma vida sem escolhas, então não seríamos diferentes daquele fetinho de plástico; seríamos um mero objeto.

Além de tudo isso, o discurso “a favor da vida” está nos chamando de idiotas. Porque acha que vamos acreditar que eles são transparentes em suas intenções, quando não são. Porque acha que vamos acreditar que a causa deles é justa porque usa palavras bonitas, quando o que estão fazendo é torpe, é desumano, é lutar para nos tirar direitos.

Mas há uma palavra para quando você diz uma coisa querendo dizer outra completamente diferente: enganação.

O problema – e o que deixa os “a favor da vida” mais desesperados, tendo que apelar para distribuir fetinhos de plástico na rua – é que isso não nos engana mais. Cada vez mais pessoas estão conseguindo analisar esses discursos de uma forma mais crítica.

E, assim espero, isso resulte em debates cada vez mais abertos sobre a urgência de se descriminalizar o aborto – sem as maquiagens, desinformações e terrorismo de sempre. 

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