Sociedade

Qual Rio de Janeiro as Olimpíadas revelam?

Especialistas falam que megaevento acentua divisões sociais e escancara o fracasso da política de segurança

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Qual o projeto de segurança idealizado para os Jogos Olímpicos que perdurará no Rio? Qual o legado do megaevento esportivo para a cidade cartão postal do Brasil, dona de belezas naturais exuberantes e mazelas históricas?

Mergulhado em polêmicas sobre gastos astronômicos e aumento da violência do Estado contra manifestantes e populações de favelas, o megaevento acentua divisões sociais e escancara o fracasso de uma política de segurança pública marcada pelo confronto, observam especialistas ouvidos por CartaCapital.

“O projeto de segurança das Olimpíadas é produzir um cordão dentro do estado dizimado por um conjunto de políticas públicas destrutivas dos últimos anos no Rio”, aponta Vera Malaguti Batista, professora de criminologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e secretária do Instituto Carioca de Criminologia.

Ela condena a terceirização de funcionários públicos e a privatização de serviços básicos nas sucessivas gestões do PMDB à frente da prefeitura do Rio. “Não há projeto para o Rio e o povo, há para o capital transnacional, para as grandes empresas. O Porto Maravilha, por exemplo, ficou bonito, mas aquilo foi um estupro urbanístico, que removeu populações e apagou memórias históricas da cidade.”

Desde 2009, quando o Rio se tornou cidade-sede dos Jogos Olímpicos, a polícia matou mais de 2.600 pessoas na cidade, segundo a Anistia Internacional. Dados coletados pela ONG junto ao Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro mostram que entre abril e junho houve um aumento de 103% no número de mortes causadas pela polícia no Rio, em comparação ao mesmo período de 2015. A polícia matou 49 pessoas em junho, 40 em maio e 35 em abril, totalizando 124 vítimas em 90 dias.

“Tudo piorou, o Estado policial aumentou, assim como uma concepção de segurança equivocada”, critica Vera. “A segurança é totalmente focada no grande evento, não há legado nenhum. As Olimpíadas estão sendo concebidas como uma ilha, mas saindo daquele perímetro não há nada.”

Vice-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima acredita que o cenário do Rio hoje traduz muitas das contradições do que ele classifica de “tragédia brasileira de combate à violência”.

“Em 2007 houve um esforço grande de tentar implementar uma política de segurança a partir das UPPs, que funcionaram em um primeiro momento, mas faltou um olhar da política enquanto ocupação do espaço público”, observa. “A violência voltou a ter picos, e as disputas entre facções voltam a chamar atenção.”

Lima ajudou na elaboração do relatório Os Donos do Morro: uma Análise Exploratória do Impacto das UPPs no Rio, publicado em 2012 e fruto de uma parceria entre o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Laboratório de Análise da Violência (LAV) da Uerj.

O estudo mostra que, com a ausência do truculento contrato social do chefe do morro que mandava castigar ou matar autores de roubos e estupros e o aumento dos registros de crimes que antes não eram denunciados, mortes violentas foram reduzidas a um quinto e roubos, a um terço. Por outro lado, furtos cresceram 50% e estupros, 300%, passando de aproximadamente 2 por mês em 2007 para mais de 5 mensais a finais de 2010.

Depois do período analisado, o que se observa é um “esgotamento” das UPPs, observa. “É um bom projeto, mas não pode ser considerado por si só uma política de segurança para o Rio de Janeiro. Tanto que quando ele se enfraquece, acabam-se retomando respostas populistas na linha ‘bandido bom é bandido morto’. O que a UPP fez foi interromper essa dinâmica, que depois de seu esgotamento volta a ganhar energia.”

Ignacio Cano, pesquisador do LAV/Uerj, discorda da vinculação direta entre a falência do projeto das UPPS e o aumento da violência. “As UPPs viraram fetiche da segurança pública para o bem e para o mal. Então tudo o que acontece de bom é atribuído elas, e quando o cenário é negativo, idem”, critica.

Cano observa que o cenário é um pouco mais complexo e o que as estatísticas mostram uma queda da violência não apenas nas áreas de UPP como em todo o Rio de Janeiro entre 2008 e 2012, seguido de um aumento em 2013 e 2014, leve queda em 2015 e uma nova explosão neste ano de 2016.

Segundo ele, as UPPs geraram uma expectativa irreal de que resolveriam boa parte dos problemas, mas há casos de violência policial e corrupção que não serão resolvidos de um dia para o outro.

“Durante muitos anos as UPPs simplesmente continuaram sendo expandidas, sem correção de rumos ou avanços na direção de transformar o projeto em uma polícia comunitária de fato”, lembra. “A realidade mostrou que não basta continuar políticas que começaram dando certo, é preciso avaliá-las e repensá-las. Não há mágica a ser feita.”

Se o Rio não conseguiu uma receita de sucesso para um de seus maiores problemas estruturais, muitos países têm demonstrado que os modelos exitosos contemplam três eixos: aproximação com a população, uso intensivo de informações e transparência para o aperfeiçoamento das investigações, e integração entre diferentes atores institucionais. “O Brasil precisa perseguir isso”, sugere Lima ao citar a Polícia Civil, a Polícia Militar, o Ministério Público e o Judiciário, ou seja, todos aqueles com atribuição de investigação e punição de autores de crimes.

O horizonte, no entanto, não se mostra muito amistoso. “Com esse governo, a tendência é tudo piorar muito mais. Temos um ministro da Justiça que se apresenta como policial e não como guardião de direitos e da Constituição. Além disso, há a Lei Antiterrorismo, que é um equívoco perigosíssimo”, critica Vera.

“Segurança pública não é combater atrás dos muros, vigiando o povo, em um modelo de ocupação territorial. Para mim, segurança é um conjunto de políticas em educação, saúde, transporte, iluminação pública e um pequeno corpo policial bem treinado e próximo da população. Mas hoje vamos na contra mão disso, com um enorme contingente de policiais treinados no paradigma bélico.”

A atmosfera de guerra, no entanto, não é exclusiva do Rio de Janeiro. “Os Jogos chegam no momento em que o Brasil todo não sabe o que fazer para lidar com o problema da segurança”, analisa Lima ao observar que apesar de tentativas, as polícias continuam sem dialogar, o MP não se engaja, e a própria criminalidade é dinâmica e vai assumindo diferentes formas.

“Para que as Olimpíadas deixem um legado, todos esses atores têm de aproveitar a oportunidade e fazer esforços. Do contrário, os Jogos passarão e continuaremos com a tragédia de 60 mil mortos por ano no País.”

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