Sociedade

Prisões brasileiras têm um ‘Carandiru’ a cada três anos

Para especialistas, 20 anos após massacre de 111 detentos, sistema carcerário piorou e continua barril de pólvora

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A superlotação do presídio do Carandiru foi apontada como uma das causas do massacre ocorrido em 1992 – em que 111 detentos foram mortos pela Polícia Militar durante uma rebelião. Mais de 20 anos depois, os crimes enfim começaram a ser julgados, mas o sistema penitenciário brasileiro segue sucateado e, segundo especialistas, continua um barril de pólvora.

Celas superlotadas, quadro de funcionários insuficiente, falta de condições de higiene e de atendimento médico, abuso por parte de agentes penitenciários, além de violência por parte de militares dentro dos presídios. A lista de problemas é extensa e, pelo menos a médio prazo, parece não ter solução.

 

 

“Em 1992, quando houve o massacre, as condições de encarceramento não eram tão ruins como nos dias de hoje. Na última década, o Brasil quadruplicou sua população carcerária e temos, atualmente, cerca de 500 mil pessoas presas, das quais cerca de 200 mil no Estado de São Paulo”, explica Bruno Shimizu, o defensor público e coordenador do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

Para Shimizu, desde aquela época houve mudanças mais cosméticas nas prisões, tais como a criação de um grupo de elite militarizado em São Paulo chamado de Grupo de Intervenções Rápidas (GIR) – que substituiu a Polícia Militar nas incursões dentro de prisões paulistas, mas que, segundo ele, também pratica abusos contra os presos.

“Em números não oficiais, cerca de 120 pessoas morrem dentro de penitenciárias brasileiras a cada três anos, de 1992 até hoje, vítimas de violência [das forças de segurança]. Isso significa que temos um massacre do Carandiru a cada três anos no Brasil. Se formos incluir outras causas de mortes, como a falta de atendimento à saúde, esse número é estratosférico”, acrescenta.

Juízes contribuiriam para superlotação

Especialistas ouvidos pela DW dizem que a legislação brasileira não é o grande problema, mas o sistema judiciário. Por questões culturais, afirmam, os juízes brasileiros não contribuem para a melhoria da situação nas penitenciárias do país ao tentar adotar penas alternativas – e usam o encarceramento como única solução.

Shimizu diz que o foco do problema do encarceramento em massa é o poder judiciário – composto, segundo ele, principalmente por pessoas da classe média que trazem uma ideologia específica que vai ser reproduzida nas decisões judiciais. Muitos, afirma, acabam analisando os casos não segundo a Constituição, mas por sua própria moralidade.

“Há também a incapacidade do Estado e das famílias de impedirem que os jovens sejam cooptados pelo crime, principalmente por conta do narcotráfico. O sistema educacional é falido e não consegue atrair a juventude. Sem mudanças estruturais, há a tendência do crescimento da violência e do número de presos”, frisa Antonio Flávio Testa, especialista em segurança da Universidade de Brasília (UnB).

Atila Roque, diretor executivo da Anistia Internacional Brasil, diz que a população carcerária brasileira está entre as maiores do mundo e que cerca de 40% das pessoas estão em prisão temporária, sem ainda nem terem sido julgadas. Dessa forma, muitas ficam presas por mais tempo do que se fossem condenadas pelo crime cometido.

“Claramente o Brasil não tem uma política inteligente de penalização de delitos que não mereceriam prisão e que poderiam ser tratados de outra maneira. Parece que o Estado brasileiro responde a uma situação de expectativa da sociedade de combate ao crime com uma estratégia de encarceramento”, explicou Roque.

O especialista da Anistia Internacional Brasil afirma que o Estado precisa agir em três níveis: rever o sistema de penalização, para não colocar todos na prisão; rever as condições de vida dentro do sistema carcerário; e, também, criar um sistema que favoreça a reabilitação dos presidiários.

“As condições terríveis só produzem ódio e horror nos presos, por causa das condições indignas. E é terrível que isso seja feito em nome da sociedade”, acrescenta Roque.

Facções criminosas

A situação prisional brasileira e a violência policial – alvos constantes de críticas por parte da ONU – favoreceram a criação da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), em São Paulo, em meados de 1993 – portanto, menos de um ano depois do massacre do Carandiru.


Camila Nunes Dias, professora de políticas públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC) e pesquisadora associada do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP), diz que a violência policial e prisional são elementos ideológicos para justificar a criação do grupo. “O Estado age como inimigo de parte da população, e pobres veem a polícia como ameaça e repressão e não como garantidor de segurança.”


Mas o PCC tem uma atuação mais simbiótica do que de contraposição ao sistema prisional brasileiro – o número de rebeliões caiu, o crack não entra mais em presídios dominados pela organização e o estupro de novatos, muito comum antes da hegemonia da facção, não ocorre com tanta frequência como no passado.

“Isso significa que, por conta do PCC, a população prisional, mesmo em condições piores do que em 1992, ficou mais calma. Isso porque o detento deve obediência absoluta a essa facção e faz com que ninguém tome uma atitude na cadeia, como matar algum desafeto, sem autorização de uma liderança interna do PCC”, destaca Shimizu.

Porém, há o outro lado da moeda. Ao mesmo tempo, surge aí a dificuldade de se reintegrar o preso à sociedade, pois o PCC faz com que ele seja mais estigmatizado. Segundo Shimizu, o cárcere cria problemas de identidade em relação ao preso e, pelo fato de ele ser coagido para entrar nessa facção criminosa, a deteriorização de sua identidade é aprofundada. “Mas é assim que o sistema ainda se segura.”

DW.DE

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