Sociedade

Povos indígenas: ainda uma vez o esbulho

O STF pode decretar a anistia para todo o roubo de terras indígenas realizado antes de 1988

Lideranças indígenas durante reunião da Frente Parlamentar de Apoio aos Povos Indígenas na Câmara do Deputados, em Brasília. O que eles podem esperar do Estado?
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Membros do Supremo Tribunal Federal (STF) querem interditar os benefícios da justiça de transição aos povos indígenas do Brasil, ao dar acolhida a entendimento de que a Constituição de 1988 é o marco temporal para se avaliar a presença de povos indígenas em terras reclamadas para demarcação e homologação. Está em vias de ser decretado, assim, o esquecimento para todo o roubo ou esbulho de terras indígenas ocorridos nos anos anteriores a 1988 como, por exemplo, os casos que surgiram nos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade.

A 2ª turma do STF, reunida em 16 de setembro, votou por maioria contrariamente aos direitos dos Guarani Kaiowá sobre terra da qual foram expulsos em 1940. Os indígenas nunca desistiram de voltar a ocupar seu território tradicional. Três dos cinco ministros, Gilmar Mendes, Celso de Melo e Carmen Lúcia, votaram contra os índios. O relator Ricardo Lewandowski votou a favor e Teori Zavaski se declarou impedido e não votou. A decisão final sobre o caso será tomada pelo plenário.

Se confirmada, a decisão representa um sério revés para a causa indígena. Depois de impedir a punição aos torturadores, o STF anistiará a todos que grilaram terras indígenas no Brasil antes de 1988.

Anistiará aqueles que, para ter a posse, se beneficiaram de atos passados de falsificação de documentos em cartórios; arrendamentos com o órgão tutor dos índios que com o tempo viraram posses registradas em cartórios; comercialização ilegal de terras indígenas, grilagem de terras.

Grave também é o fato do STF anistiar a si próprio, tal qual a ditadura fez com seus torturadores, passando uma borracha sobre a atuação do judiciário no esbulho das terras indígenas no Brasil de 1988 para trás. Uma ação iniciada no STF em 1961, sobre o roubo de terras indígenas no atual Mato Grosso do Sul, teve como desfecho dos magistrados da mais alta corte do País, em 2014, uma declaração de que mais nada se poderia fazer, mesmo tendo sido provado o esbulho de terra indígena. A justificativa: teria se passado muito tempo. Nenhuma linha sobre a necessidade de reparação aos povos esbulhados do Mato Grosso do Sul. Somente um arquive-se mais de 50 anos depois.

Mapa Mapa publicado pela revista “Veja”, em 14 de agosto de 1974, aponta volume de conflitos por todo o Brasil envolvendo área de 24 projetos governamentais em mais de 260 milhões de hectaresÉ sem dúvida o retrato da vergonhosa demora da Justiça brasileira para fazer cumprir o artigo 231 da Constituição de 1988 e os seus similares nas constituições passadas, que sempre garantiram a prevalência do direito originário do índio brasileiro face a qualquer tipo de posse que os prejudique, engendrada pelo estado ou pela sociedade envolvente.

A Comissão Nacional da Verdade aponta que os povos indígenas brasileiros foram o segmento da população mais atingido por graves violações de direitos humanos entre 1946-1988, sendo que com esta população a violência se deu em todas as quatro décadas apuradas e de forma brutal.

Foram quatro décadas de assassinatos seletivos de lideranças, caciques, religiosos e apoiadores; chacinas e massacres; extinções de aldeias com deslocamentos forçados; prisões ilegais; tortura e desaparecimento de índios; maus tratos na gestão da saúde e no cuidado do contato; escravização. Na raiz de toda a violência está o intento de afastar os indígenas de suas terras tradicionais, para apossar-se delas e de suas riquezas, incorporando-as ao chamado desenvolvimento nacional.

A decisão da 2ª turma contrasta com a disposição da Comissão Nacional da Verdade, que pela primeira vez admitiu que muitas das terras que em 1988 não eram mais habitadas por grupos indígenas estavam vazias de índios porque se praticou muita violência contra estes povos.

A criação de um marco temporal como exigência para o reconhecimento dos direitos territoriais dos povos indígenas solapa qualquer benefício adquirido pelo índio com o resultado da Comissão Nacional da Verdade. Representa também o afastamento do Supremo Tribunal Federal do conceito de justiça contidos nos tratados internacionais assinados pelo Brasil.

Não se fará justiça ao se desconsiderar as razões pelas quais algumas das terras reclamadas por indígenas estariam vazias no marco temporal que se deseja aplicar. Nos anos 80, Angelo Kretã morreu no processo de luta pela retomada de suas terras e por respeito aos direitos territoriais dos Kaingang. Seu caso ainda não foi esclarecido pela Comissão Nacional da Verdade, mas estudos realizados pelo grupo de trabalho demonstram que o Estado brasileiro sabia, 11 anos antes do “acidente” que vitimou o cacique Kaingang, que ele tinha razão na luta por seus direitos.

O grupo de trabalho apurou que no julgamento de cassação do deputado paranaense Jorge Cury, realizado 19 de janeiro de 1969, o secretario do Conselho de Segurança Nacional registrou, na ata secreta da 45ª sessão, que o deputado era grileiro de terras indígenas. Ele foi cassado e nada se fez sobre a grilagem. Kretã morreu no processo de retomada destas terras.

Documento

Enquanto a Comissão Nacional da Verdade joga luz sobre o roubo de terras indígenas até 1988, incluindo o índio na justiça de transição e apontando a necessidade de se entender a demarcação como forma de reparação, o STF jogará um manto escuro sobre o que veio à tona, impedindo que o devido direito de reparação beneficie os povos indígenas brasileiros. Como desdobramento, tornará inútil a recomendação de criação de uma Comissão Especial para continuar os trabalhos de apuração das violências contra os índios em nosso País, visando aprofundar as pesquisas iniciadas e contribuir para a reparação efetiva dos atingidos.

Parte dos documentos reunidos sobre a questão indígena pela Comissão Nacional da Verdade estão disponíveis no Centro de Referência Virtual Indígena. Conhecê-los permite entendermos a tremenda injustiça que o STF pode promover, ao acolher o conceito de marco temporal para a demarcação das terras indígenas e retratam a situação do índio no Brasil do fim da ditadura Vargas, passando pelos anos de chumbo, até o início da redemocratização.

Os Kaingang, tal qual Angelo Kretã, ainda lutam por suas terras. Enfrentam, como muitos outros povos, a violência do Estado que continua atentando contra o direito territorial do índio brasileiro. O executivo, por meio da Casa Civil e do Ministério da Justiça, suspendeu em 2013 todas demarcações de terras indígenas no Paraná e em áreas de conflito nos demais estados. No Congresso, nesta legislatura que termina, a PEC 215 e inúmeras proposições de deputados e senadores que retiram direitos indígenas estão em tramitação e foram motivo de protestos em Brasília por parte do movimento indígena. No Judiciário, a 2ª turma do STF firma entendimento que independente dos fatos passados até 1988 – terra sem índio na época da promulgação da Constituição, perderá o direito de ser reconhecida como terra indígena.

Da Constituição de 1988 até hoje os indígenas não tiveram sossego em nenhum ano transcorrido. A violência não arrefeceu, muito pelo contrário. Nos últimos 10 anos, mais de 600 indígenas foram assassinados por defender a terra e seus direitos, superando a lista de mortos e desaparecidos reconhecidos pela Comissão Nacional Verdade.

O governo federal, o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional devem desculpas concretas aos povos indígenas brasileiros. Todos os poderes da república foram e são parte importante de seus problemas.

Esperamos que os demais ministros não sigam o entendimento da 2ª turma por ocasião do julgamento do caso em plenário, que o voto seja pelo não provimento, reafirmando o direito originário às terras indígenas tão vilipendiado frente a tantas violências sofridas por estes povos, antes e depois de 1988. Que se faça justiça aos povos indígenas do Brasil demarcando suas terras sem subterfúgios, que o STF seja parte da solução, afirmando o direito à justiça de transição. Essa é a principal reparação devida aos povos indígenas pelo Estado e pela sociedade brasileira.

*Marcelo Zelic é vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais-SP e membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo. Coordenador do projeto Armazém Memória

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