Saúde
Portas da percepção
Quem são e como são treinados os terapeutas psicodélicos no Brasil


Até há pouco tempo, não se ouvia falar em psicodélicos fora de determinados círculos ou contextos, havia uma capa de silêncio e tabu que envolvia o tema. Esse tempo ficou para trás e o assunto se tornou mainstream no mundo. A velocidade com que os psicodélicos invadiram da mídia às rodas de conversa, por meio de livros, séries e estudos nas universidades, faz com que um número enorme e inédito de cidadãos esteja interessado em tratar patologias mentais com essas ferramentas. Nem todas, infelizmente, conseguem de fato ser tratadas.
Um dos motivos é a legislação, ainda muito restrita no Brasil, e o outro, o enorme gargalo na oferta de profissionais treinados e preparados para atender a uma demanda tão nova quanto avalassadora. Esse tem sido um problema também no Canadá e na Austrália, onde a partir de 1º de julho a psilocibina e o MDMA, substância base das pastilhas de ecstasy, droga habitué de festivais de música eletrônica, serão autorizados em contexto medicinal. Nos Estados Unidos também há apreensão em relação à quantidade de profissionais disponíveis e a qualidade de sua formação à medida que os tratamentos se aproximam da aprovação regulatória nacional, coisa que deve acontecer até o início de 2024 com a aprovação do MDMA, em fase avançada de estudos, e da psilocibina, logo em seguida.
A preocupação com a formação dos futuros terapeutas psicodélicos é tamanha que a Johns Hopkins junto com a Yale e a NYU School of Medicine anunciaram sua colaboração para a criação de um programa de educação psicodélica apoiadas por um fundo de 1 milhão de dólares que receberam de um “grupo de generosos doadores”.
Apesar de o Brasil estar ao menos meia década de distância da regulamentação dos usos do MDMA e da psilocibina em tratamentos médicos, o fato é que o uso de outras substâncias psicodélicas está em curso no País faz alguns anos. São três, especificamente: a ayahuasca, a ibogaína e a cetamina, também conhecida como esquetamina.
A ayahuasca, a ibogaína e a cetamina têm sido usadas em tratamentos
A ayahuasca, regulada desde 1991, só foi incorporada à legislação brasileira em 2010, pela Resolução nº 1 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que permite sua utilização em contexto religioso. A ibogaína, por sua vez, é regulamentada pela RDC 79/2014, também da Anvisa, que estabelece as condições para o uso terapêutico da raiz de origem africana, normalmente utilizada com altos índices de êxito em casos de adição a opiáceos como o crack e a cocaína.
Anestésico de uso reconhecido, a cetamina é uma substância controlada pela Portaria SVS/MS 344/1998. Sua administração está restrita a veterinários e médicos, e, nos casos de tratamento de saúde mental, são normalmente indicadas para estresse pós-traumático, alcoolismo, depressão refratária e ideação suicida, por demover o paciente de tais pensamentos muito mais rapidamente do que qualquer antidepressivo convencional.
Agora mesmo no Brasil algumas dezenas de clínicas, hospitais e espaços habilitados aplicam alguma dessas três substâncias a pacientes que sofrem de algum transtorno mental refratário, aqueles resistentes a outros tratamentos, e para as quais as substâncias psicodélicas representam uma última esperança. Não há dados sobre quantos terapeutas trabalham com substâncias psicodélicas hoje, mas certamente há algumas centenas.
Comunidade. Ao menos dois profissionais atuam em conjunto, em sessões que podem durar de 6 a 8 horas – Imagem: Paula Silva Siqueira
Normalmente, são psiquiatras e psicólogos que se interessam em formar-se como terapeutas psicodélicos. Cada vez mais médicos de outras especialidades, entre eles, médicos de família e paliativistas, se aproximam, porém, do tema pelo cuidado com pacientes terminais, para os quais os psicodélicos têm sido uma descoberta à parte. Sabe-se que um dos grandes efeitos dessas substâncias é justamente dissociar o ego do indivíduo, dando uma sensação de integração com o todo. E quando se é o todo, a morte não existe.
Para lidar com pacientes em um estado expandido de consciência, os terapeutas vão precisar de habilidades diferentes daquelas que aprenderam em uma formação clássica em psiquiatria e psicologia. São elas:
• habituar-se a sessões longas (que podem facilmente durar entre 6 e 8 horas, e em alguns casos, até mais);
• estar presente e acompanhar os pacientes de forma intensa, com momentos desafiadores, deixando o paciente ser o próprio protagonista do seu processo, numa postura não-diretiva;
• observar outros estados de consciência sem uma visão patologizante;
• aprender a lidar com questões éticas, por exemplo, sobre consentimento para intervenções corporais, como segurar a mão ou dar um abraço;
• entender como lidar com a música, que usualmente não desempenha um papel tão importante, mas na terapia assistida ganha muita relevância.
Trabalhar em dupla é outra prática pouco comum no exercício da psiquiatria ou da psicologia, mas que se estabelece nos protocolos de atendimento psicodélico. “Tem um propósito de segurança do paciente, em nenhum momento ele fica desacompanhado. Em oito horas de sessão, é normal que um da dupla queira ir ao banheiro ou comer alguma coisa”, conta Thales Caldonazo, psicoterapeuta que trabalha com psicodélicos há vários anos. Desde 2019, Caldonazo é diretor de planejamento e organizador dos cursos do Instituto Phaneros, o primeiro a oferecer uma formação a profissionais de saúde interessados no assunto. “Primeiro conheci o trabalho da respiração holotrópica, depois fui conhecendo outras formações, o trabalho da Maps. Fomos reunindo o melhor que aprendemos em outros lugares, juntamos várias dessas fontes e vamos lapidando essa formação.”
O Instituto Alma Viva iniciou o primeiro curso na área com o selo do MEC
O modelo de atendimento em dupla provavelmente nasceu nos protocolos da MAPS, maior centro de investigação e pesquisa psicodélica do mundo, e se espalhou como prática de alunos do mundo inteiro que, como Caldonazo, viajaram aos EUA para aprender com a organização os detalhes da psicoterapia assistida por psicodélicos. “É interessante sempre que possível formar duplas com um homem e uma mulher, com idades diferentes, e entre psiquiatras e psicoterapeutas, que se complementam.”
Terapeutas, não é de hoje, trabalham com elas no atendimento aos pacientes. É o caso da dupla de xarás, o médico gastroenterologista Bruno Rasmussen (um dos mais experientes no mundo na administração da ibogaína) e do psicólogo com foco em redução de danos, Bruno Ramos, que trabalha em parceria há mais de uma década. Seus pacientes viajam do Brasil inteiro ou vem de outros países direto para o interior de São Paulo para se tratar com ele, que aplica o psicodélico cercado dos protocolos de segurança, desde a garantia de ao menos um mês de abstinência de qualquer droga antes da sessão, check-up completo da saúde, incluindo estudos detalhados sobre a saúde cardíaca do indivíduo, até uma triagem minuciosa feita por Ramos.
Rasmussen e Ramos trabalham em parceria desde o ano passado com a clínica Beneva, que oferece tratamentos com ibogaína e cetamina. “Pouco se conhece sobre a cetamina, pouca gente fala sobre ela, mas tem um monte de tratamento sendo desenvolvido, tanto em pesquisa quanto na prática clínica. O paciente toma a cetamina em doses mais altas ou mais baixas, e faz psicoterapia. É um campo em expansão”, analisa Ramos.
Alucinógeno. Os cogumelos “mágicos” fornecem a psilocibina. Falta controle – Imagem: iStockphoto
Para além das substâncias autorizadas no País, os famosos cogumelos “mágicos” são bastante utilizados, ainda que habitem uma zona cinzenta da legislação onde os fungos, em si, não são proibidos, mas a psilocibina, substância contida neles, sim. O vazio legal tem estimulado a venda desse cogumelo em ao menos 25 lojas virtuais que fazem delivery a qualquer lugar do Brasil. Inúmeras pesquisas comprovaram que a psilocibina tem altas taxas de segurança e eficácia, em outras palavras, enquanto apresenta baixíssimo risco à saúde e potencial aditivo perto de zero, também tem tido êxito em tratamentos de depressão refratária, aqueles casos em que nenhum remédio convencional funciona. No ano passado, um estudo comprovou que os efeitos terapêuticos de uma única dose de psilocibina duraram por quase um ano.
É fácil comprar a psilocibina, mas a sua psicoterapia ainda não está regulamentada, tal fenômeno gera um movimento em que diversos terapeutas atendem a pacientes de psilocibina no underground, arriscando seu próprio registro profissional para não deixar um paciente desassistido.
Para coroar uma fase inédita do nicho no Brasil, a primeira turma da pós-graduação em Psicoterapia Assistida por Psicodélicos do Instituto Alma Viva iniciou no fim do mês passado o primeiro curso a contar com o selo do MEC. “Queremos formar novas lideranças, mas o principal é formar profissionais para a prática do dia a dia do consultório”, conta Cesar Camara, diretor científico do instituto.
Aluna da pós, a psicóloga Aline Camargo procurou formação na área justamente para ganhar know how, mas só encontrava opções fora do Brasil. Sua preferência era, no entanto, estudar e atuar no País “pela complexidade do tecido social que temos diante de tantas misturas culturais, o que permite observar os melhores processos de acompanhamento no pré e pós-sessão”. Além de lidar com pacientes, também pretende atuar em pesquisas em órgãos públicos. “Quero me formar como tripsitter e acompanhar a universalização dos tratamentos que acontecem na classe mais privilegiada da nossa sociedade.”
Com aulas online e encontros presenciais não obrigatórios, os alunos que quiserem terão direito a orientação científica e a participar como terapeutas assistentes nos protocolos de pesquisa aprovados pelo Alma Viva no estudo da psilocibina e da cetamina. “Vamos abrir o instituto para acompanhar as sessões de supervisão, vamos divulgar quem se formou, estamos montando uma rede com as instituições que aplicam ibogaína e cetamina para conectar esses profissionais”, diz Camara.
O Instituto Phaneros também coloca seus alunos para trabalhar nos protocolos de pesquisa que tem aprovados com MDMA (1) e psilocibina (4), onde atenderão, ao todo, 220 pacientes. Independentemente da possibilidade de participar das pesquisas, Caldonazo sente que grande parte dos alunos se interessa pelo tema para, enquanto aguarda o momento de regulamentação, “estar preparada e ser pioneira quando esse caminho se abrir legalmente”. •
Publicado na edição n° 1265 de CartaCapital, em 28 de junho de 2023.
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