Sociedade

Por que rememorar (e esquecer) a Guerra Civil de 1932?

A memória daquela conflagração tende a deixar para trás as reais razões do conflito

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Sou paulista, nascido em uma pequena cidade do interior, chamada Itararé. Desde muito cedo escutava, de meus familiares e conhecidos, histórias que relacionavam a minha cidade com acontecimentos maiores, conhecidos por “Revolução de 1930” e “Revolução Constitucionalista de 1932”.

Utilizando uma fala muito pertinente de Leandro Karnal, temos uma tradição de não chamar de “Guerra Civil” movimentos violentos que envolveram a história do Brasil. Falamos em revoltas, revoluções, insurgências e não lembramos do caráter do confronto como de mobilização civil e disputas bélicas entre habitantes de um mesmo país.

Hoje, passados 84 do maior confronto armado em território brasileiro no século XX, as lembranças que se envolvem com 1932 são geralmente de caráter saudosista, civilista, patriótico, regionalista e, em certa medida, elitista, quando não utilizados como argumento para a soberania e independência de São Paulo.

Acreditem: uma rápida pesquisa pelas redes sociais nos apresenta grupos de movimentos separatistas, muito bem engajados, dos mais radicais aos “constitucionais”, que pretendem, como os “bravos de 1932”, colocar São Paulo nos trilhos.

Este tipo de movimento e a valorização de certos ideais (escolhidos) se confundem, muitas vezes, com o trabalho de pesquisa histórica. Por conseguinte, a temática sobre os paulistas é cada vez mais deixada de lado pela produção acadêmica no Brasil. Coincidência? Acredito que não.

A brecha da produção histórica abre caminho para a difusão de ideais no mínimo perigosos acerca de um acontecimento extremamente importante na conjuntura do Governo Provisório de Getúlio Vargas. Muito já foi e ainda é escrito sobre a Guerra Civil de 1932. No entanto, assim como se percebe como outros assuntos de nossa violenta história, a leitura desses acontecimentos não tem alcançado, como deveria, a população.

Além das organizações que fervilham pelas redes sociais, a identidade e a memória de 1932 estão presentes em importantes nomes na cidade de São Paulo. A Avenida 23 de Maio (data da morte dos paulistas Martins, Maragaia, Dráusio e Camargo, que de suas iniciais se originou o MMDC) e a Avenida 9 de Julho (data de estopim do movimento) são dois bons exemplos.

Já o Obelisco do Ibirapuera é o principal local de homenagem ao movimento, a partir da construção do que se chama de “memória oficial”. No local estão guardados os restos mortais de centenas de combatentes paulistas mortos. São militares, estudantes, profissionais liberais, operários. As maiores vítimas de uma causa com forte poder de cooptação popular, tramada pela Frente Única Paulista, junção do Partido Republicano Paulista (PRP), dos oligarcas, com o Partido Democrático (PD), composto pela burguesia média paulista ascendente nos anos 1930. 

Nos cabe uma atenção muito especial em como aspectos de simbolismo foram utilizados pela imprensa paulista na propagação do imaginário que visava construir São Paulo livre. Recorreu-se, entre vários elementos, à figura histórica do bandeirante paulista.

O bandeirante, como se sabe (não se deixando esquecer seu protagonismo no massacre das populações nativas por muito tempo), era fruto da miscigenação de europeus e indígenas, quando também não de negros, e foi ilustrado pelas publicações dos jornais paulistas em 1932 de uma maneira bastante peculiar: um homem branco, forte, alto, implacável e irredutível em seus propósitos.  

Neste quesito, do trabalho da imprensa paulista em 1932, há de se reconhecer como os jornais diários incorporam o discurso das classes dirigentes. O Estado de S. Paulo, que dois anos antes exaltou o triunfo de Vargas, passou a empreender uma verdadeira cruzada pela vitória. Assim também fizeram os jornais Folha da Manhã, A Gazeta, Diário Nacional, entre muitos outros.

As rádios, inclusive as emissoras de tenentistas que foram invadidas, davam a tônica da campanha. Proclamava-se a vitória na voz emocionada e vibrante de Cesar Ladeira.

Os partidos políticos, a imprensa e os setores dominantes exaltavam uma vitória impossível. A população, num esforço descomunal, doava dinheiro e ouro em prol de uma guerra que, se vitoriosa, alcançaria uma nova Constituição, proposta ampla e ao mesmo tempo carregada de incertezas de melhorias sociais para os que pegavam em armas.

Neste sentido, cabe um questionamento: que tipo de Constituição as lideranças do movimento desejavam? Ou, mais especificamente, todo o esforço visou somente uma nova Constituição para o país?

Estudantes universitários passaram a construir máquinas de combate, mulheres deixaram suas famílias para costurar e, em alguns casos, comandar os hospitais de guerra e homens adultos, de diferentes profissões, marcharam a um front desconhecido. A historiadora Maria Helena Capelato, em uma das melhores obras sobre 1932, destaca como o trabalho de domínio das consciências serviu para que o episódio adquirisse uma aparente característica de larga participação das camadas sociais, com objetivos de solucionar as necessidades de todos os envolvidos: 

O domínio das consciências, uma das técnicas mais eficazes de controle social, foi levado nesse período às últimas consequências. A “grande imprensa” veiculou a ideologia dominante através das manchetes, editoriais, anúncios, artigos; falou a “todos” e por “todos”, adequando os valores “eternos” às necessidades imediatas suscitadas pelas conturbações políticas e sociais. (CAPELATO, Maria Helena. O movimento de 1932 – a causa paulista. São Paulo, Brasiliense, 1982, p. 32)

Se o movimento conseguiu envolver praticamente todas as classes sociais, vale ressaltar que, como em muitas guerras regionalistas, 1932 também produziu seus excluídos. Ou melhor, tentou-se mobilizar populações marginalizadas para impedir, sob qualquer alegação, que a causa pudesse ser fator de exclusão. Todavia, ao arregimentar homens negros e tribos indígenas, e criar batalhões específicos para essas populações, quase sempre separados dos outros voluntários e militares, São Paulo dava mostras de sua face mais segregacionista.

Em menos de três meses de guerra, o número oficial de mortos pelo lado dos constitucionalistas foi próximo a 700 (contando os restos mortais no Obelisco Mausoléu). Sem dúvidas, este número passa a ser bem maior se incluirmos civis não contabilizados e soldados das tropas legalistas. Para se ter uma ideia da gravidade desses dados, a participação brasileira na libertação da Itália durante a Segunda Guerra Mundial fez menos vítimas fatais. Portanto, o Brasil assistiu nos anos 1930 a uma luta curta, ingrata e perdida – desde o seu começo.

Como o título deste texto sugere, há muito o que se lembrar e esquecer com relação ao movimento. Quando, em 17 de abril deste ano, acompanhava na TV o espetáculo circense em que se transformou a votação da Câmara Federal sobre o afastamento da presidente Dilma, percebi como o discurso raivoso, reacionário e conservador ainda insiste em tomar para si a memória de um acontecimento político complexo.

Me refiro à fala do deputado Eduardo Bolsonaro, (PSC-SP) filho de Jair Bolsonaro. Antes de proferir seu voto, o deputado esbravejou que tomava sua decisão “pelo povo de São Paulo nas ruas com o espírito dos revolucionários de 32…”    

Sua expressão de rememorar a Guerra de 1932 transmite uma suposta seriedade no voto e comprometimento com a decisão. Pobres paulistas e brasileiros…. Enquanto a memória das batalhas e do derramamento de sangue servir para compor este tipo de fala, estaremos longe de encontrar a resposta mais sensata para, de fato, entender o porquê da valorização de 1932.

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