Sociedade

Por que os crimes cometidos por policiais ficam anos sem resposta no Brasil?

Investigações por conta própria, intimidação de testemunhas e arquivamento frequente de casos criam um ciclo de impunidade que atinge desproporcionalmente a população negra e periférica

Débora Silva, fundadora do movimento Mães de Maio — Foto: Arquivo
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Operações policiais resultam na morte de milhares de pessoas a cada ano, mas seguem falhando em desmantelar o poder do crime organizado. Esse cenário de violência e ineficácia patrocinadas pelo Estado – e contra uma população quase sempre pobre, negra e periférica – leva a um ciclo de impunidade.

“As investigações são iniciadas e fadadas ao fracasso”, aponta Alexandra Montgomery, advogada e diretora de programas da Anistia Internacional Brasil, organização que apura e documenta violações de direitos no mundo. 

O ‘organograma’ da impunidade a que ela se refere começa logo após as mortes decorrentes nessas operações. Isto porque as investigações sobre ações da polícia militar, por exemplo, muitas vezes são conduzidas pela própria polícia.

“As investigações precisam ser realizadas por um órgão diferente daquele envolvido nos fatos”, observa a jurista. “Se você comete o crime e o seu colega vai investigar, as chances de ignorar evidências estão instaladas.”

Esse problema é agravado pela intimidação exercida por alguns agentes, um fator crucial no ciclo que fragiliza a continuidade das investigações. Sem testemunhas dispostas a falar, o inquérito, por vezes, não vira denúncia no Ministério Público, por falta de provas. 

No Rio de Janeiro, mais de 60% das mortes em operações policiais não são sequer investigadas, como mostra um levantamento do Ministério Público estadual. 

Essa dinâmica de intimidação se repetiu na Operação Escudo, na Baixada Santista (SP), que resultou em 28 mortes. No contexto desta operação, cujo objetivo declarado era combater o tráfico de armas e drogas, moradores relataram que alguns agentes minimizavam as mortes, tratando-as como mera ‘estatística’. Essa postura sugere uma normalização da violência e desencoraja os depoimentos de testemunhas, perpetuando assim o ciclo de impunidade.

Na etapa de reunir provas, depoimentos e fazer análises, quem assume são os Grupos de Atuação Especial da Segurança Pública e Controle Externo da Atividade Policial, também conhecidos como Gaeco ou Gaesp. Eles estão vinculados ao Ministério Público. Mas, apesar de sua independência constitucional para investigar as forças policiais, tendem a arquivar um grande número de processos.

Dados Fórum Justiça, em parceria com especialistas em segurança e o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), mostram que, entre 2011 e 2021, o Ministério Público do Rio de Janeiro arquivou 91,5% dos 1.491 inquéritos de mortes decorrentes de atuação policial. 

Devido ao grande número de casos arquivados, as famílias das vítimas executadas, sobretudo as mães, redobram esforços para descobrir novas evidências que possam reabrir os casos. Com isso, elas esperam pressionar o Ministério Público a conduzir investigações mais minuciosas e profundas. 

“Viramos peritas independentes para apontar ao Estado onde há erro, onde há evidências”, lamenta Debora Silva, fundadora do movimento Mães de Maio e pesquisadora do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF), da Unifesp. “”A parte processual é a parte que mais viola a existência dos nossos filhos.”

No Dia das Mães em 2006, Edson Rogério, filho de Débora, foi encontrado morto a tiros. Ele era gari e ainda tinha seu contracheque no bolso.

Durante esse período, entre 12 a 21 de maio, a polícia e grupos paramilitares mataram 564 pessoas em São Paulo e fizeram desaparecer outras quatro.

Estas execuções ocorreram em resposta a ataques do PCC, o chamado ‘salve’, que resultaram na morte de 59 agentes públicos. Os ataques foram uma reação às transferências de presos para uma unidade de segurança máxima, incluindo o líder do PCC, Marco Willians Herbas Camacho, conhecido como Marcola.

Depois de dois anos, a Polícia Civil encerrou o inquérito sem identificar culpados e o Ministério Público de São Paulo pediu que as investigações fossem arquivadas, o que foi aceito pelo Tribunal de Justiça.

Em 2009, o grupo Mães de Maio, junto com a Defensoria e a Conectas, pediu que o caso fosse federalizado, passando a investigação para a Polícia Federal e o Ministério Público Federal.

Sete anos depois, em 2016, o então Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, aceitou o pedido de federalização e levou o caso ao Superior Tribunal de Justiça.

Em 2022, o Superior Tribunal de Justiça atendeu ao pedido da PGR, e a Polícia Federal começou a investigar as mortes de 5 jovens entre as vítimas de maio de 2006.

Já se passaram quase duas décadas de busca por justiça. Segundo Débora, a demora se deve não só à lentidão dos processos, mas também à intenção do Ministério Público de deixar os crimes prescreverem e proteger os agentes envolvidos.

Até agora, não há novidades sobre a investigação da PF sobre os cinco jovens. A maioria dos outros casos foi arquivada.

Rute Fiúza, mãe de Davi, desaparecido forçado após ação da PM — Foto: Anistia Internacional

“Essa impunidade tornou a cultura da morte algo comum”, lamenta Rute Fiuza, do Movimento Mães de Maio do Nordeste, em Salvador (BA).

Davi Fiúza, que tinha 14 anos em 2014, foi levado por policiais do PETO e Rondesp e nunca mais foi visto.A investigação da Polícia Civil indicou que matar Davi foi uma espécie de “batismo” para novos PMs.

Em 2018, a Polícia Civil finalizou o inquérito sobre Davi, indiciando 17 policiais militares por homicídio. O Ministério Público da Bahia, porém, só denunciou 7 deles, acusando-os de sequestro e cárcere privado, não de homicídio.

A audiência que deveria ocorrer em outubro de 2022 foi adiada. Segundo a Anistia Internacional Brasil, a sessão foi postergada porque uma testemunha que viu Davi ser levado não pôde comparecer.

Espera-se que a audiência aconteça em 2024, dez anos após o o desaparecimento de Davi. Seu corpo ainda não foi encontrado.

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