Sociedade

Por que adoram odiar o Neymar?

No futebol e na vida, confundimos humildade com submissão. O camisa 10 dá um nó em quem se nega a torcer pela molecagem. Por Matheus Pichonelli

Se estivesse no colégio, junto com os descabelados David Luiz, Dante, Marcelo e Daniel Alves, ele seria o menino insolente do fundão a quem o professor diz: “você não vai virar nada na vida”. A resposta é uma piscadela
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Quando Neymar correu para a bola, ouvi ao redor os gritos da vizinhança. “Vai errar”, disseram uns. “Vai fazer”, retrucaram outros.

Ele fez.

Uns comemoraram, outros engoliram.

O gol acabava de pavimentar o caminho do Brasil para as quartas de final da Copa, mas deixava exposta uma situação inusitada diante do mais jovem atleta a liderar a seleção em um Mundial. Nunca antes na história desse país dependemos tanto de um talento em uma Copa do Mundo. E nunca antes tanta gente relutou em admitir que ele está pronto para a missão, apesar dos quatro gols marcados até aqui.

A explicação pode ser uma questão de afinidade. Ou a consequência de um fosso um pouco mais profundo. Explico. Dias atrás, um conhecido foi jantar em um restaurante badalado de nossa cidade, no interior paulista, e encasquetou com o garçom, um jovem de tatuagem e franja espetada que era a cara do craque do Barcelona. Foi a deixa para o freguês, um empreendedor bem-sucedido das redondezas, montar o seu teatro de posições definidas (também conhecido como “você me serve, e eu te lembro o tempo todo que é você quem me serve”).

– E aí, Neymar.

O garoto franzia a testa, quieto.

– E esse cabelinho, hein, Neymar?

Foi assim a noite toda. O rapaz vinha, servia, recolhia os pratos sujos e ouvia alguma gracinha às costas:

– Você acha bonito esse cabelinho redêcolo, Neymar?

Uma hora ele estourou:

– E você acha bonito parecer o Frankenstein?

Como não esperasse a reação, a resposta, exatamente no mesmo tom da provocação, soou como petulância. Era como se o garçom, cover do Neymar como muitos jovens da sua idade, levasse um espelho àquele teatro de posições definidas. Sim, o sujeito parecia o Frankenstein: as entradas, os rabelos ralos, o sorriso engessado de tanta cirurgia plástica…só não tinha ouvido aquilo antes porque estava acostumado a ser servido, e não a servir.

Ao fim do jantar, chamou o dono do restaurante, seu amigo, e pediu a cabeça do rapaz. Disse que se negava a voltar ao local enquanto o moleque trabalhasse ali. O sujeito foi embora, o moleque ficou.

O caso, claro, é isolado e não representa mais que isso: um caso curioso. Mas quando Neymar correu para converter o pênalti e ouvi o agouro sobre ele, não pude deixar de lembrar daquele garçom. Era como se parte da torcida torcesse para que ele mandasse a bola para longe juntamente com tudo o que o ele representava: a cara de uma juventude petulante e insubmissa. De repente não era o garçom que se parecia com o Neymar, mas o Neymar que se parecia com o garçom, e com a legião de jovens que chegam em casa com os cabelos espetados e elevam o índice de infarto entre os pais das mais impolutas famílias.

É uma invertida, e das bravas. Para essa ala da torcida, é intolerável depender tanto de um menino que debocha de nossos cabelos arrumados com suas luzes, suas franjas, suas tatuagens, suas pulseiras e suas cuecas à mostra. Esse jovem deveria estar onde sempre esteve: na rua, nos quintos, nessa legião de meninos fãs de tênis de marca e funk ostentação que não podem entrar no shopping. Não deixa de ser um fenômeno curioso: todos sabem da origem humilde da maioria dos jogadores, mas, com raras exceções (Romário é uma delas), é quase sempre preciso moldar um rosto, e um modo de ser, para ser alçado à glória do esporte, a única capaz de combinar títulos e respeito, sobretudo com a camisa da seleção, lugar de gente séria, devota, humilde. Neymar não parece humilde. Nem parece querer ser. No esporte, como na vida, isso quase sempre é fatal.

No álbum do Brasil de Todas as Copas, lançado no fim do ano passado, é possível ver algo em comum a todos os chamados líderes em Mundiais até 2014, de Didi, mestre e resguardo do jovem Pelé em 58, a Kaká, o funcionário-padrão das Copas de 2006 e 2010. Todos tinham ou rosto de homens, reforçados pelo bigode e o rosto sisudo, ou de meninos bem comportados, confiáveis, concentrados e acima de qualquer suspeita. Neymar é, assim, uma espécie de anti-Zico, ídolo até mesmo quando falha na hora do pênalti. (Ai de Neymar se ele errar).

E por que, tendo liderado o Santos na Libertadores de 2012, tendo se tornado um dos dez maiores artilheiros da seleção aos 22 anos, e tendo liderado a equipe na Copa até aqui, Neymar ainda desperta tanta antipatia?

Porque, como se dizia antigamente, ele não tem “modos”. Por mais que esta imagem despojada seja uma construção de seu estafe, que gera renda com propagandas mil, e por mais responsabilidade tática tenha em campo, o fato de ele inspirar uma juventude desapegada a uma referência anterior, a do bom-moço que acorda cedo e cumpre ordens sem reclamar, representa um nó na projeção ideal do ídolo. Se estivesse no colégio, junto com os descabelados David Luiz, Dante, Marcelo e Daniel Alves, ele seria o menino insolente do fundão a quem o professor de cintura engessada repete o tempo todo como uma vacina: “você não vai ser nada na vida”. A resposta é uma piscadela, um balançar de polegares e a caminhada na ponta dos pés, como quem pisa nos corações e diz: “você não gosta de mim, mas seus filhos adoram”.

Neymar é desses, e sem querer leva a campo o rosto de uma juventude que busca espaço na vida sem pedir licença. Ele pode até não ganhar a Copa, mas já sambou no rosto de meio mundo que busca com lupas em suas cuecas uma fissura moral para manifestar um velho e inconfesso preconceito de classe.

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