Sociedade

Por causa do espinafre

Palavra morta é palavra que ninguém mais usa. Ao usá-la, posso estar botando de pé uma palavra moribunda. Qual é o problema?

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Outro dia me encontrei mais ou menos espinafrado em uma resenha sobre um livro meu por ter usado a palavra “álgido” no título de um conto. O comentário, que ficou indeciso entre o jocoso e o venenoso, não me afetou muito justamente por essa indecisão. O interessante, contudo, é que muitos anos atrás eu já sofrera uma ofensa um tanto maliciosa por causa dessa mesma palavra. Na época, fiquei em dúvida se deveria me enfurecer por causa da maldade ou ficar penalizado por causa da obtusidade.

Me explico.

Quando uma pessoa de pouca familiaridade com a letra de forma reclama do meu vocabulário, procuro entender. Entender, apenas. E isso não me convence a usar apenas um repertório lexical espremido pela falta de leitura. Sei que se lê muito pouco em nosso país. Mas isso não supõe que nos devamos conformar com a situação. Que o vocabulário, sobretudo dos jovens, tende para a repetição de monossílabos, é fato mais que sabido. É uma tendência. Nem por isso é preciso entrar na onda.

Nos tempos de faculdade, tive um professor que gostava de repetir: Quem pode o mais, pode o menos. Quem pode o menos, não pode o mais.

Claro, como toda frase de efeito, é contestável a afirmação do professor. Mas há nela algo que se deve aproveitar. Nossa língua é rica. E bela. Concordo com o Olavo Bilac. Talvez menos inculta do que ele pensava. Ah, mas bela. E rica. Se posso dizer “coração álgido” para significar um frio repentino, fruto de uma situação, não acho que seja pior do que dizer “coração frio”. Álgido é mais do que apenas frio, tem algo em sua sonoridade que expande o sentido, que acrescenta ideias que vão além do frio.

Bem, se alguém não conhecia a palavra e foi consultar um dicionário, ótimo, seu vocabulário, se não me engano, cresceu.

Com o que não me conformo, entretanto, é que nos dois casos citados, o autor do texto era alguém com obrigação de conhecer a língua, sua ferramenta. Difícil aceitar que uma pessoa que provavelmente viva de escrever sobre livros estranhe uma palavra. E não me venha dizer que há um vocabulário anacrônico, palavras que já morreram, portanto não devem ser usadas. Palavra morta é palavra que ninguém mais usa. Ao usá-la, posso estar botando de pé uma palavra moribunda. Qual é o problema? O uso frequente do dicionário, meus caros resenhistas, é um costume bastante saudável.

É evidente que há muitos defensores do grunhido, esse retorno que poderá devolver-nos à floresta, mas, enquanto tiver forças para resistir, vou continuar enterrado em alguma trincheira. E se a figura não é boa, acho que ainda é melhor do que dizer simplesmente que vou continuar lutando. Porque é assim a língua, até o coração pode ser álgido.  

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