Sociedade
Perdeu, playboy
Elon Musk quis fazer do Brasil um exemplo de “república bananeira”. Não deu certo


O Brasil está novamente no centro das discussões sobre o poder das big techs e os crescentes desafios que estas, ainda inalcançáveis na maior parte do mundo por uma regulamentação eficaz, impõem aos governos nacionais e ao próprio Estado Democrático de Direito. O País, tudo indica, foi o laboratório escolhido por Elon Musk para testar os limites da lei e da paciência do Poder Público diante do singular conceito de “liberdade de expressão” praticado na rede social X, convertida em um refúgio para extremistas, homofóbicos, misóginos, racistas, neonazistas e meliantes de todos os calibres. Para escapar de qualquer tipo de regulação, o bilionário não hesita em desrespeitar determinações legais e afrontar autoridades de diversos países, desde que elas não tenham investimentos ou parcerias comerciais com suas empresas, claro.
A reação ao empresário partiu mais uma vez do Supremo Tribunal Federal, por iniciativa do onipresente ministro Alexandre de Moraes, e culminou na suspensão das atividades do X e de outra empresa de Musk, a desenvolvedora de satélites de baixa órbita Starlink. O motivo das suspensões foi a recusa do X em indicar um representante legal da empresa no Brasil, capítulo mais recente de uma briga pública iniciada em abril, quando Musk ignorou as determinações de Moraes para que fosse excluída da rede social uma série de notícias falsas e mensagens de ódio postadas em diversos perfis, entre eles o da bolsonarista Paola Daniel, mulher do ex-deputado Daniel Silveira, e o do senador Marcos do Val, do PL.
A novidade ganhou as manchetes mundiais na mesma semana em que outra figura controversa do universo das redes sociais, o russo Pavel Durov, dono do Telegram, foi detido em Paris e comunicado da proibição de abandonar o território francês, acusado de não colaborar com a Justiça em um processo no qual a rede que controla é acusada de abrigar divulgação de conteúdo pornográfico, tráfico de drogas e fraudes. Ambos os casos se sucedem a embates judiciais que opõem governos nacionais a empresas como X e Telegram e a outros gigantes do setor, como Google e Meta. Em jogo, uma discussão crucial para o futuro da democracia e das relações humanas: os países conseguirão controlar as big techs ou esse pantanoso mundo virtual será definitivamente uma terra sem lei?
A Starlink é onipresente nos garimpos da Amazônia. A Arábia Saudita baniu o X, mas Musk não ousa criticar o príncipe Bin Talal, seu sócio – Imagem: Arquivo/AFP e Bruno Mancinelle/Casa Civil
Coordenadora do Comitê Gestor da Internet no Brasil, Renata Mielli afirma que é tarefa central enfrentar o poder econômico das plataformas e observa que algumas são tão poderosas que teriam assento entre as 20 maiores economias do mundo. “É a primeira vez que temos empresas individuais com tamanho poder econômico, que também é poder político. Empresas que atualmente controlam data centers, computação de alta capacidade, redes de interconexão. Empresas que dominam cadeias produtivas e, ainda mais grave, concentram de forma perigosa o debate público”. São necessárias iniciativas, acrescenta Mielli, para enfrentar esse perigoso monopólio. “Os países precisam investir em infraestrutura crítica, ter mais controle sobre seus dados e desenvolver aplicações que possam minar os interesses dessas empresas e construir caminhos alternativos.”
Para Artur Romeu, diretor do escritório da Repórteres Sem Fronteiras na América Latina, a regulação das plataformas e da Inteligência Artificial com marcos que ampliem a responsabilidade e transparência das big techs “é fundamental para que as democracias não sejam cada vez mais tomadas como reféns em casos como o que estamos vendo com o X”. O argumento da defesa da liberdade de expressão usado por Musk, Durov e outros para atacar qualquer tipo de regulação, acrescenta Romeu, é uma falácia. “A garantia da liberdade de expressão passa em grande medida por avanços de marcos regulatórios robustos e equilibrados sobre as atividades dessas gigantes da tecnologia. Há que se garantir uma lógica de supervisão democrática, defesa da integridade da informação e valorização da internet como bem público.”
Por unanimidade, a primeira turma do STF manteve o bloqueio à rede social no Brasil
Enquanto o debate global não acontece, o enfrentamento entre o Estado de Direito e os barões que controlam as big techs se dá de forma esparsa e na base do mano a mano. Na França, solto após cinco dias de prisão mediante o pagamento de uma fiança de 5 milhões de euros, o dono do Telegram, terceira maior rede de mensagens do mundo, atrás apenas de Facebook e WhatsApp (empresas da Meta), responderá em liberdade a seis acusações que podem render-lhe uma pena de dez anos de prisão. O mundo observará com atenção o desenrolar do processo contra Durov, pois é a primeira vez que um magnata das redes sociais é acusado e preso por um Estado nacional por “permitir” a realização de crimes na plataforma que dirige e se recusar a remover ou identificar arquivos com conteúdo criminoso. A decisão francesa se apoia no Regulamento para Serviços Digitais (DAS, na sigla em inglês), lei em vigor desde 2022 na União Europeia, vitrine da gestão de Ursula von der Leyen e por enquanto a mais bem-estruturada tentativa de conter o poder das big techs.
Nos EUA, o CEO da Meta, Mark Zuckerberg, tornou-se alvo do Congresso em uma investigação sobre a veiculação para adolescentes nas redes sociais da empresa de conteúdos de predadores sexuais ou de incentivo ao suicídio. Uma delas, o Instagram, responde a processos em 40 estados norte-americanos por permitir o acesso de menores de 13 anos. Em janeiro, durante audiência no Senado, o criador do Facebook chegou a ler uma carta de desculpas aos pais dos adolescentes mortos. “Nenhuma família deveria passar pelo que vocês passaram.” Aos senadores, Zuckerberg apresentou medidas consideradas irrelevantes e prometeu “novos investimentos” de 2 bilhões de dólares em segurança. “Manter os jovens seguros online tem sido um desafio. À medida que os criminosos aprimoram suas táticas, temos que aprimorar nossas defesas também.”
A audiência no Senado dos EUA teve também as presenças dos executivos Shou Zi Chew, do TikTok, Linda Yaccarino, do X, Evan Spiegel, do Snap, e Jason Citron, do Discord. “Vocês têm sangue em suas mãos. São donos de um produto que está matando as pessoas”, disse o senador Lindsey Graham, do Partido Republicano. Apesar do pito levado no Senado, nada mudou. Para piorar, Zuckerberg, em uma ação vista como pró-Trump por analistas políticos, afirmou, em uma carta enviada no fim de agosto a um deputado da Câmara dos Representantes, arrepender-se de ter “cedido às repetidas pressões” do governo de Joe Biden para retirar do ar postagens com desinformação científica sobre a pandemia em 2021.
Enquanto ruge com as autoridades brasileiras, o bilionário acata mansamente os pedidos de remoção de conteúdo feitos por Erdogan, da Turquia, e Modi, da Índia. Os países vão abrigar fábricas da Tesla – Imagem: Presidência da Turquia e Gabinete do Primeiro Ministro/India
Apesar de as postagens retiradas indicarem tratamentos ineficazes ou incentivarem o fim do isolamento social, a pressão hoje é vista por Zuckerberg como cerceamento à liberdade de expressão. “Estamos prontos para lutar para que isso não ocorra novamente”, garante o CEO da Meta. Candidata democrata à Casa Branca, a vice-presidente Kamala Harris defende maior responsabilização das big techs. “É preciso entender o poder desses sites de mídia. Eles estão falando diretamente com milhões e milhões sem qualquer nível de supervisão ou regulamentação. Isso tem que parar.”
Figurões como Musk, Zuckerberg, Durov e Zhang Yiming, dono do TikTok, entre outros, se equilibram sobre um maleável conceito de defesa das liberdades que varia conforme a cara do freguês. Mas, às claras ou nos bastidores, apoiam e fazem acordos com governos, regimes e políticos, quase sempre de direita. Nesse time, o dono do X, que se definiu como “um absolutista da livre expressão”, encarna personas diversas de acordo com o interesse financeiro de suas empresas. Com o Brasil, resolveu rugir como um leão, mas ronrona em diversos outros países.
É o caso da Índia ou da Turquia, onde o X acatou passivamente os pedidos feitos pela Justiça de retirada de conteúdos considerados ofensivos aos respectivos chefes de governo, Narendra Modi e Recep Erdogan. Coincidentemente, os dois países anunciaram projetos bilionários para a instalação em seus territórios de fábricas da Tesla, empresa de Musk fabricante de automóveis elétricos. O vigor libertário do empresário também empalidece na Arábia Saudita, onde usuários do X são condenados à morte após a identificação de postagens na rede. Vale lembrar que o príncipe saudita Alwaleed Bin Talal investiu, por meio da Kingdom Holding Co., cerca de 2 bilhões de dólares no próprio X e despejou outros bilhões na xAI, empresa de Musk dedicada à Inteligência Artificial.
Durov foi preso em Paris por violar a legislação europeia, uma vitrine da gestão de Ursula von der Leyen – Imagem: PSD/Portugal e Steve Jennings/AFP
No Brasil, em que pesem os 22 milhões de usuários do X e o fato de a Starlink deter 46% do mercado nacional de internet via satélite (ou 0,4% do mercado de banda larga), Moraes determinou a suspensão da plataforma em 30 de agosto, findo o prazo de 24 horas para que a empresa indicasse um representante legal no Brasil e após uma postagem de Musk na própria rede afirmando que “não cumpriria decisões ilegais”. A determinação, respaldada de forma unânime pela Primeira Turma do STF três dias depois, tem validade até que sejam pagas pela empresa todas as multas, em um total de 19 milhões de reais, e cumpridas todas as ordens judiciais para retirada de conteúdo ou pedidos de esclarecimento.
A suspensão foi o mais recente capítulo de uma disputa iniciada em abril, quando Musk postou uma série de ataques ao ministro. Em 17 de agosto, o empresário, que teve seu nome incluído por Moraes nas investigações sobre as milícias digitais, anunciou que o X decidiu encerrar as suas atividades no Brasil e demitir cerca de 40 funcionários, mas a rede social continuou a operar no País. “Após os reiterados e voluntários descumprimentos de ordens judicias, a empresa demonstra não se submeter ao ordenamento jurídico e ao Poder Judiciário brasileiros e pretende instituir um ambiente de total impunidade e terra sem lei”, escreve Moraes em seu despacho. O magistrado afirma ainda que Musk é permissivo com “a divulgação massiva de desinformação, discurso de ódio e atentados ao Estado Democrático de Direito”.
A crise estaria pior se a Starlink não tivesse recuado na terça-feira 3 da intenção de desrespeitar mais uma ordem de Moraes, o bloqueio de acesso de seus usuários ao X no Brasil. “Apesar do tratamento ilegal dado à Starlink, estamos cumprindo a decisão de bloquear o acesso ao X no Brasil”, anunciou em comunicado a empresa, que tem 224 mil clientes de banda larga fixa espalhados em 4.761 municípios. “O bloqueio da Starlink se daria para o pagamento das multas que foram impostas ao X antes de sua suspensão, uma forma de assegurar o pagamento de uma sanção processual”, explica o advogado criminalista Bruno Salles Ribeiro, coordenador do Grupo Prerrogativas. Ele ressalta que essa sanção deveria recair primariamente à empresa que cometeu a infração processual. “Ainda que o X e a Starlink tenham o mesmo controlador, são empresas distintas.”
O projeto para regular as big techs continua adormecido nas gavetas da Câmara
Uma das recomendações da Primeira Turma do STF para que se evite casos como o do X é a adoção pelo Brasil de leis que regulamentem as ações das big techs. O PL 2630, mais conhecido como PL das Fake News e que parecia pronto para ser votado no ano passado, permanece, porém, escondido nas gavetas da Câmara desde que o presidente da casa, Arthur Lira, do PP, criou um grupo de trabalho com representantes dos diversos partidos para retomar os debates sobre a proposta. “Até o momento não aconteceram encaminhamentos desse colegiado”, lamenta o deputado Orlando Silva, do PCdoB, relator do projeto.
Silva lembra que o PL 2630, ainda não aprovado, traz expressamente a obrigação de que as plataformas digitais que atuam no Brasil tenham representação legal no País, mas ressalta que o Artigo 1.138 do Código Civil já determina que quaisquer empresas estrangeiras que atuem no Brasil devem ter representação aqui, inclusive para receber citações judiciais e responder perante as autoridades brasileiras. O deputado avalia que a regulação das plataformas é um debate global. “É uma necessidade dos dias atuais porque as big techs operam serviços que impactam as vidas de bilhões de usuários em diversos países. A dimensão que ganharam tais serviços impõe que existam regras mínimas para o setor, como existem regulações para todos os grandes segmentos que estruturam as economias e as sociedades.”
Vice-líder do governo na Câmara, Carlos Zarattini, do PT, afirma que, mesmo se o PL das Fake News tivesse sido aprovado, isso não alteraria o embate entre o STF e o X. “O que está em jogo é o respeito às instituições democráticas no Brasil. Musk desrespeita a legislação brasileira e, qualquer que fosse a legislação, ele trabalharia com esse desrespeito”, avalia. O deputado garante que a base do governo está totalmente de acordo com a decisão de Moraes. “Consideramos que fazer as leis brasileiras serem respeitadas por empresas e por pessoas que atuam no País é uma questão de soberania.”
Alvo de fake news e de imagens manipuladas pela extrema-direita, Kamala Harris cobra responsabilidade das plataformas nos EUA – Imagem: Redes sociais
A existência de uma lei, acredita Mielli, tornaria explícitas as regras legais e os critérios e parâmetros para a atuação de plataformas de redes sociais, serviços de mensagens e ferramentas de busca internacionais. “No PL 2630, há a determinação de que empresas que contem com mais de 10 milhões de usuários no Brasil devem manter, obrigatoriamente, representação legal no País. Além de entrar em aspectos mais específicos sobre a responsabilidade das plataformas em casos de conteúdos de terceiros envolvendo atentados ao Estado Democrático de Direito, higidez do processo eleitoral, danos à saúde pública e outros.” A lei, acrescenta a coordenadora do CGI, traria mais segurança jurídica para os usuários, às empresas e até mesmo para o Judiciário aplicar as sanções cabíveis.
Romeu avalia que as decisões do STF, em particular aquelas diretamente associadas ao inquérito das fake news, ocorrem em um contexto de ausência de resposta por parte de outras instituições do Estado para enfrentar e frear a disseminação massiva de desinformação, discurso de ódio e ataques contra instituições democráticas: “Da mesma forma, o vazio regulatório relega ao STF a responsabilidade de ação. A expectativa com o PL 2630 era justamente criar um marco regulatório que fortalecesse a capacidade do Estado de supervisão democrática e responsabilização das grandes empresas como X pelos abusos que ocorrem em suas plataformas”.
Para Salles Ribeiro, a suspensão das atividades do X no Brasil está de acordo com o artigo 61 da Lei Geral de Proteção de Dados, que demanda a existência de representante no Brasil que possa ser intimado ou notificado das ordens emanadas pelas autoridades brasileiras. “Logo, não há qualquer ataque à liberdade de expressão, mas sim a aplicação das normas nacionais.” O advogado lembra que todo meio de comunicação está sujeito a regulação e que a Constituição estabelece que a propriedade de empresa jornalística, de radiodifusão e de divulgação de sons e imagens deve ser privativa de brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, além de pessoas jurídicas constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sede no País. “Isso obviamente não representa um ataque à liberdade de imprensa, mas o estabelecimento de parâmetros mínimos de regulação. Ademais, nenhum direito fundamental é absoluto e deve ser sempre sopesado à luz de outros princípios e garantias previstos na Constituição Federal.” •
Publicado na edição n° 1327 de CartaCapital, em 11 de setembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Perdeu, playboy‘
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