Sociedade

Pedras, pedrinhas…

Há várias especulações sobre o que provocou a violência no presídio do Maranhão, mas a única certeza é que alguém está lucrando

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Desci os cinco andares que nem vi; passei voando. De repente já estava lá no andar térreo e correndo para todos os lados, na inútil busca por saídas. Na galeria do primeiro pavilhão era possível ver poças de sangue e ouvir os tiros. Era rebelião, as galerias da penitenciária estavam enfumaçadas por bombas. A polícia vinha invadindo e atirando a esmo; os olhos e a garganta ardiam e não se via quase nada. Corri com a alma presa aos dentes como uma faca. Companheiros caíam à frente e os tiros pipocavam, parecia corrida de obstáculos. Zorelha corria a meu lado e caiu, nem olhei para trás; dei todo gás que ainda dispunha.

Quando alcancei o terceiro pavilhão, um sujeito bem gordo me ultrapassou, nem sei como, todo esbaforido, com os olhos arregalados de medo e suando como um porco. Alguns companheiros que cuidavam das portas para a polícia não invadir de surpresa o pararam. Ele era tido e havido como “agente” da polícia; um maldito cagueta. Os policiais pararam de atirar. Queriam negociar. Provavelmente só então confirmaram as suspeitas de que os 52 funcionários que permaneceram na prisão estavam reféns dos presos rebelados no fundo do terceiro pavilhão.

O gordo que viera comigo foi sendo empurrado a facadas para a galeria de baixo, no porão, onde ficamos quase todos. Quando chegamos ao pé da escada, cerca de 3 ou 4 companheiros o juntaram a facadas. Atravessaram o infeliz de um lado ao outro dezenas de vezes. Ele só arregalava mais os olhos a cada facada e soltava o ar com que vomitasse. Acho que quando caiu já estava morto. Seu uniforme claro estava todo avermelhado de sangue. Gravaram uma viga de ferro no peito do infeliz. Um de seus inimigos deu a ideia da degola e logo apareceram outros para executar. O sujeito era odiado de fato. Puxaram os cabelos da vítima para trás e expuseram sua garganta. Ao lado, um outro inimigo, com uma enorme faca de cozinha, fez um corte longo e profundo. O sangue espirrou longe, manchando a todos por perto, inclusive minha calça (só percebi dias depois). Inexperiente, tentou serrar o osso do pescoço e demorou aterrorizantes minutos. O sujeito havia espalhado malquerença, porque o ódio ali parecia profundo. A faca virou machado e, de repente, o outro preso que fazia pressão puxando os cabelos da vítima, caiu com a cabeça sangrando nas mãos.

Assistia aquela crueldade estático, sem acreditar no que estava vendo. Quis fugir àquele horror, aquele corpo sem cabeça e aquela cabeça sem corpo, mas tudo aquilo parecia me hipnotizar, não conseguia tirar os olhos. Só sabia dizer:  “Nossa, nossa, nossa…” Meus pés pareciam cimentados no chão. Quando consegui me mover senti uma dor grossa atravessando os ossos. Eu estava baleado. Essa consciência foi a última que tive. Tudo foi sumindo e acho que apaguei. Acordei na emergência do hospital do Mandaqui cheio de dores.

Quando vi aquela filmagem dos corpos amontoados e as cabeças separadas na Penitenciária de Pedrinhas, no Maranhão, tudo aquilo voltou violentamente. Era quase uma continuidade, como se ainda eu estivesse preso e novamente me senti hipnotizando. Não conseguia parar de olhar aquelas cabeças sem corpo, tentando ler os olhos, saber o que sentiram, era insano. Não dava para acreditar nos noticiários. Eu já estivera do outro lado do aquário e sabia que as informações eram quase sempre simples chute de jornalista metido a esperto. O que levara aqueles homens presos a tamanho barbarismo; de onde nascera tanto ódio, tanta loucura? Estive preso quase a vida toda e lá dentro não encontrei nenhum bicho ou animal irracional. Encontrei pessoas; presos são seres humanos, humanamente criminosos. No caso que presenciei, a vítima havia caído nas mãos daqueles que prejudicara e esses se aproveitaram da oportunidade para matá-lo com requintes de crueldade. Mas, e agora? As autoridades falaram em guerra de facções pelo poder. Fala-se também de estupros a presos e até a familiares de presos e que toda aquela violência era a revolta daqueles que haviam sido abusados. Mas o que dá para perceber é que ninguém sabe de nada e que estão criando a partir de  imaginações férteis. Teriam mais sucesso se trabalhassem com ficção.

Algumas situações já se pode entender: as condições de existência naquele complexo prisional são as piores possíveis. Superlotação, insalubridade, espancamentos, tortura, estupros, abuso do preso sobre o preso… Em suma: toda aquela coleção desconcertante de infelicidades prisionais. Enfim, é um retrato do que acontece em quase todo o país. Há também o caso da oligarquia encastelada no poder há décadas naquele Estado. É de conhecimento geral, não são corretos, para dizer o mínimo.  Bertold Brecht, dramaturgo alemão do século passado, dizia que a miséria e a desgraça não vêm como a chuva que cai do céu e sim através daqueles que tiram lucro com isso. Com certeza tem alguém tirando alguma vantagem dessa desumanidade toda.

*Luiz Mendes é escritor e colunista da revista Trip. Autor de quatro livros, no primeiro deles, Memórias de um sobrevivente, discorre sobre os 31 anos em que passou preso. No dia do Massacre do Carandiru, estava em um prédio vizinho, na Penitenciária do Estado.

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