Sociedade

Paralimpíada: “Desde que perdi minhas pernas, entendo o verdadeiro heroísmo dos competidores”

Fotógrafo que perdeu as duas pernas e o braço esquerdo em uma explosão no Afeganistão descreve a mudança em sua percepção dos Jogos

Kim Gyu Dae, atleta sul-coreano disputa os 1500m na categoria T54 do atletismo, nesta segunda-feira 3, nos jogos de Londres. Foto: Leon Neal / AFP
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“Honestamente, acho que estou na fila certa”, eu digo.

“Não, senhor, o senhor deveria estar na outra fila.”

Desisto. Há três trabalhadores voluntários decididos a me fazer mudar da fila onde estou parado com meus colegas fotógrafos para a fila marcada para competidores.

“Senhor, o senhor deveria estar ali”, diz um deles, olhando para minhas pernas protéticas. Eu rio do surrealismo não apenas disso, mas de minha vida nos últimos 18 meses. Decido desfrutar o momento. Uma mulher me entrega uma flor. Sorrio e entro orgulhosamente na Aldeia Paralímpica.

A equipe chinesa acaba de chegar e sou envolvido por um mar de vermelho e dourado. Todo mundo dá sorrisos enormes, absorvendo o momento, dando-me tapinhas nas costas quando passam, posando ao lado dos seguranças para fotos. O ambiente é elétrico e não consigo evitar ser envolvido. Um chinês enorme pousa um braço sobre meus ombros quando passamos pela segurança. Parece que fui adotado.

Eu realmente amo a Olimpíada: o salto mortal de Daley Thompson, o pai de Derek Redmond ajudando-o a terminar os 400m depois que sua panturrilha estourou nos Jogos de Barcelona em 1992, Carl Lewis, Michael Johnson, sir Steve Redgrave – as memórias de infância estão cheias desses momentos e ídolos. Sou um desses caras que passa duas semanas grudado em cada esporte, de repente um especialista em arco sul-coreano, dissecando as sutilezas do pouso de um ginasta, elogiando os movimentos de um remador neozelandês. Até onde posso me lembrar, fui um viciado em Olimpíada. Mas a Paralimpíada? Nunca realmente me pegou. Meu erro foi pensar que a Paralimpíada tentava copiar a Olimpíada. Depois entendi que estava errado.

Então, num dia de verão do ano passado, enquanto trabalhava como fotógrafo no Afeganistão, meu relacionamento com a Paralimpíada e a deficiência mudou. Em um instante, uma bomba escondida me transformou de um homem capaz, um maratonista de 40 anos, em um triplo amputado. Para a sociedade, eu havia me tornado um homem gravemente incapacitado. A grande ironia foi que durante anos eu tinha documentado os feridos em conflitos ou marginalizados pela sociedade por causa de sua deficiência. Agora eu estava em suas fileiras.

Dois anos atrás, quando eu via alguém sem uma perna ou um braço, me perguntava como essa pessoa podia suportar. As façanhas de Oscar Pistorious antes me pareciam impossíveis; agora eu olhava com inveja para sua amputação abaixo do joelho.

No início de minha jornada, enquanto me recuperava de mais uma operação, lembro-me de uma enfermeira que disse: “Você deve estar realmente entusiasmado com a Paralimpíada”. Não foi a primeira vez que alguém fez um comentário parecido, mas ele ainda deixou meu coração apertado. Era um lembrete de como o mundo me via agora.

Desde o dia em que dei aquele passo fatídico no Afeganistão, sempre me senti a mesma pessoa; no entanto, inevitavelmente, não sou. Meu cerne, minhas paixões, meus amores e interesses continuam os mesmos; meu corpo, porém, mudou para sempre. Para os que olham para mim, quando me conhecem, é o corpo que veem. Sou rotulado como um deficiente.

No início lutei contra a ideia de que eu era um deficiente e tentei evitar qualquer associação. Não queria que meus ferimentos me definissem, ser visto de algum modo diferente de quem eu era. Por isso a Paralimpíada era algo que eu quase desprezava. Não gostava da ideia de ela salientar, ou mesmo comemorar, a deficiência.

As coisas começaram a mudar para mim quando saí do hospital. Tive a sorte de começar minha reabilitação com os militares em Headley Court, em Surrey. Embora não fosse necessariamente o lugar ideal para mim – não sou muito competitivo e prefiro uma abordagem da vida mais solitária –, ele me mostrou a importância do esporte e dos desafios na recuperação.

Entre nós havia alguns que pretendiam ser, e hoje são, paralímpicos. Outros tinham metas diferentes: pedalar através da América ou voltar a esquiar. Todo mundo, porém, enfrentou seus desafios individuais com incrível resolução. Ter essa meta os animava e dava uma sensação de objetivo quando tanto tinha sido tirado deles. Na verdade, costumávamos brincar que alguns caras não pareciam ter sido informados de que tinham perdido ou ferido um membro, pois continuavam treinando com toda a intensidade que um dia possuíram, senão mais. Eles tinham aceitado seus ferimentos e não estavam preparados para aceitar que fossem barreiras. Foi um privilégio treinar ao lado deles.

Com o passar do tempo, os jogos se aproximaram, e como eu havia conhecido alguns paratletas minhas opiniões começaram a mudar. Em parte através de seu exemplo, comecei a aceitar meus ferimentos e o modo como a sociedade me via agora. De modo surpreendente, comecei a ver as vantagens e benefícios de minha situação.

É claro que muitas atividades são mais difíceis, algumas até impossíveis. Tenho de conviver diariamente com dores. Como fotógrafo, tenho consciência de que não poderei fazer muitas das coisas que antes fazia. Muitas vezes olho para imagens que fiz no passado com uma tristeza que vem do fato de saber que não poderia refazê-las hoje. No entanto, você aprende a não enfocar no que não pode fazer, e sim no que pode. Agora vejo que algumas de minhas capacidades melhoraram. Estou mais considerado e enfocado, e grande parte de minhas dúvidas surpreendentemente se dissiparam. Mais importante, minha empatia e compreensão de meus temas aumentaram. Antes do acidente fotografei algumas cenas muito perturbadoras e muitas vezes me senti um abutre capturando o sofrimento dos outros – apesar de saber os motivos para tirar aquelas fotos. Ter passado por algo semelhante possivelmente dará a minhas fotos uma visão mais profunda.

Ainda este ano espero voltar ao exterior para continuar minha fotografia humanitária. Durante muito tempo questionei se isso era certo, pois achava que não deveria fazer esse trabalho a não ser que estivesse no topo do jogo. Depois de muito pensar e praticar, estou convencido de que voltarei ao trabalho um homem e um fotógrafo melhores do que era no dia em que dei aquele passo fatídico.

Foram esse crescimento e essa compreensão que mudaram minha opinião sobre a Paralimpíada. Hoje percebo que estava errado em minhas percepções dos jogos. Tudo está no nome. Esta é a “Olimpíada paralela”, não tenta competir com a Olimpíada ou comparar-se a ela. Celebra os atributos e as técnicas que estes atletas possuem. Quando as pessoas questionaram se Pistorius teve uma vantagem injusta na Olimpíada, estavam certas – não por causa de suas próteses high tech, mas por causa da força que sua jornada lhe deu.

Para a maioria dos atletas olímpicos, o treinamento é seu maior desafio e onde eles se esforçam até o limite. Para os paralímpicos, treinamento e competição são uma escapada das dificuldades e lutas da vida cotidiana. Essa é a diferença.

Quando fui convidado pela Otto Bok – os especialistas on-site que reparam cadeiras de rodas, membros protéticos e outros aparelhos que mantêm os atletas deficientes em movimento — para ser seu fotógrafo na Paralimpíada, foi uma oportunidade que agarrei. Parecia adequado que meu primeiro trabalho fosse lá. Eu queria ser associado aos jogos e de certa maneira aos que competem. Para mim foi uma vitória pessoal entrar no Parque Olímpico, de câmera na mão, trabalhando de novo. Eu até usei shorts, porque queria orgulhosamente que as pessoas vissem minhas pernas protéticas.

Então foi assim que me vi aqui, parado na fila com a orgulhosa e sorridente equipe chinesa, e não podia estar mais feliz. A maioria desses atletas terá passado pelo menos parte de suas vidas sendo marginalizados e estigmatizados por causa de sua deficiência, mas aqui não apenas são aceitos, como celebrados. Sei que é fácil se esconder em vez de ser observado e julgado.

Exige uma certa coragem viver abertamente em um mundo que o considera diferente. Todos esses homens e mulheres estão habituados a ter os olhos do mundo sobre eles. Mas aqui estão, mostrando não o que os torna deficientes, mas celebrando o que os faz únicos.


Através de meu trabalho, eu vi o melhor e o pior das pessoas. Vi pessoas matarem e ser mortas, sucumbir à adversidade e erguer-se acima dela. Não vejo muitas pessoas como heróis, e embora eu ame o esporte acredito que os atletas raramente merecem esse elogio. Mas aqui, na Aldeia Paralímpica, não posso evitar sentir-me rodeado por heróis.

“Honestamente, acho que estou na fila certa”, eu digo.

“Não, senhor, o senhor deveria estar na outra fila.”

Desisto. Há três trabalhadores voluntários decididos a me fazer mudar da fila onde estou parado com meus colegas fotógrafos para a fila marcada para competidores.

“Senhor, o senhor deveria estar ali”, diz um deles, olhando para minhas pernas protéticas. Eu rio do surrealismo não apenas disso, mas de minha vida nos últimos 18 meses. Decido desfrutar o momento. Uma mulher me entrega uma flor. Sorrio e entro orgulhosamente na Aldeia Paralímpica.

A equipe chinesa acaba de chegar e sou envolvido por um mar de vermelho e dourado. Todo mundo dá sorrisos enormes, absorvendo o momento, dando-me tapinhas nas costas quando passam, posando ao lado dos seguranças para fotos. O ambiente é elétrico e não consigo evitar ser envolvido. Um chinês enorme pousa um braço sobre meus ombros quando passamos pela segurança. Parece que fui adotado.

Eu realmente amo a Olimpíada: o salto mortal de Daley Thompson, o pai de Derek Redmond ajudando-o a terminar os 400m depois que sua panturrilha estourou nos Jogos de Barcelona em 1992, Carl Lewis, Michael Johnson, sir Steve Redgrave – as memórias de infância estão cheias desses momentos e ídolos. Sou um desses caras que passa duas semanas grudado em cada esporte, de repente um especialista em arco sul-coreano, dissecando as sutilezas do pouso de um ginasta, elogiando os movimentos de um remador neozelandês. Até onde posso me lembrar, fui um viciado em Olimpíada. Mas a Paralimpíada? Nunca realmente me pegou. Meu erro foi pensar que a Paralimpíada tentava copiar a Olimpíada. Depois entendi que estava errado.

Então, num dia de verão do ano passado, enquanto trabalhava como fotógrafo no Afeganistão, meu relacionamento com a Paralimpíada e a deficiência mudou. Em um instante, uma bomba escondida me transformou de um homem capaz, um maratonista de 40 anos, em um triplo amputado. Para a sociedade, eu havia me tornado um homem gravemente incapacitado. A grande ironia foi que durante anos eu tinha documentado os feridos em conflitos ou marginalizados pela sociedade por causa de sua deficiência. Agora eu estava em suas fileiras.

Dois anos atrás, quando eu via alguém sem uma perna ou um braço, me perguntava como essa pessoa podia suportar. As façanhas de Oscar Pistorious antes me pareciam impossíveis; agora eu olhava com inveja para sua amputação abaixo do joelho.

No início de minha jornada, enquanto me recuperava de mais uma operação, lembro-me de uma enfermeira que disse: “Você deve estar realmente entusiasmado com a Paralimpíada”. Não foi a primeira vez que alguém fez um comentário parecido, mas ele ainda deixou meu coração apertado. Era um lembrete de como o mundo me via agora.

Desde o dia em que dei aquele passo fatídico no Afeganistão, sempre me senti a mesma pessoa; no entanto, inevitavelmente, não sou. Meu cerne, minhas paixões, meus amores e interesses continuam os mesmos; meu corpo, porém, mudou para sempre. Para os que olham para mim, quando me conhecem, é o corpo que veem. Sou rotulado como um deficiente.

No início lutei contra a ideia de que eu era um deficiente e tentei evitar qualquer associação. Não queria que meus ferimentos me definissem, ser visto de algum modo diferente de quem eu era. Por isso a Paralimpíada era algo que eu quase desprezava. Não gostava da ideia de ela salientar, ou mesmo comemorar, a deficiência.

As coisas começaram a mudar para mim quando saí do hospital. Tive a sorte de começar minha reabilitação com os militares em Headley Court, em Surrey. Embora não fosse necessariamente o lugar ideal para mim – não sou muito competitivo e prefiro uma abordagem da vida mais solitária –, ele me mostrou a importância do esporte e dos desafios na recuperação.

Entre nós havia alguns que pretendiam ser, e hoje são, paralímpicos. Outros tinham metas diferentes: pedalar através da América ou voltar a esquiar. Todo mundo, porém, enfrentou seus desafios individuais com incrível resolução. Ter essa meta os animava e dava uma sensação de objetivo quando tanto tinha sido tirado deles. Na verdade, costumávamos brincar que alguns caras não pareciam ter sido informados de que tinham perdido ou ferido um membro, pois continuavam treinando com toda a intensidade que um dia possuíram, senão mais. Eles tinham aceitado seus ferimentos e não estavam preparados para aceitar que fossem barreiras. Foi um privilégio treinar ao lado deles.

Com o passar do tempo, os jogos se aproximaram, e como eu havia conhecido alguns paratletas minhas opiniões começaram a mudar. Em parte através de seu exemplo, comecei a aceitar meus ferimentos e o modo como a sociedade me via agora. De modo surpreendente, comecei a ver as vantagens e benefícios de minha situação.

É claro que muitas atividades são mais difíceis, algumas até impossíveis. Tenho de conviver diariamente com dores. Como fotógrafo, tenho consciência de que não poderei fazer muitas das coisas que antes fazia. Muitas vezes olho para imagens que fiz no passado com uma tristeza que vem do fato de saber que não poderia refazê-las hoje. No entanto, você aprende a não enfocar no que não pode fazer, e sim no que pode. Agora vejo que algumas de minhas capacidades melhoraram. Estou mais considerado e enfocado, e grande parte de minhas dúvidas surpreendentemente se dissiparam. Mais importante, minha empatia e compreensão de meus temas aumentaram. Antes do acidente fotografei algumas cenas muito perturbadoras e muitas vezes me senti um abutre capturando o sofrimento dos outros – apesar de saber os motivos para tirar aquelas fotos. Ter passado por algo semelhante possivelmente dará a minhas fotos uma visão mais profunda.

Ainda este ano espero voltar ao exterior para continuar minha fotografia humanitária. Durante muito tempo questionei se isso era certo, pois achava que não deveria fazer esse trabalho a não ser que estivesse no topo do jogo. Depois de muito pensar e praticar, estou convencido de que voltarei ao trabalho um homem e um fotógrafo melhores do que era no dia em que dei aquele passo fatídico.

Foram esse crescimento e essa compreensão que mudaram minha opinião sobre a Paralimpíada. Hoje percebo que estava errado em minhas percepções dos jogos. Tudo está no nome. Esta é a “Olimpíada paralela”, não tenta competir com a Olimpíada ou comparar-se a ela. Celebra os atributos e as técnicas que estes atletas possuem. Quando as pessoas questionaram se Pistorius teve uma vantagem injusta na Olimpíada, estavam certas – não por causa de suas próteses high tech, mas por causa da força que sua jornada lhe deu.

Para a maioria dos atletas olímpicos, o treinamento é seu maior desafio e onde eles se esforçam até o limite. Para os paralímpicos, treinamento e competição são uma escapada das dificuldades e lutas da vida cotidiana. Essa é a diferença.

Quando fui convidado pela Otto Bok – os especialistas on-site que reparam cadeiras de rodas, membros protéticos e outros aparelhos que mantêm os atletas deficientes em movimento — para ser seu fotógrafo na Paralimpíada, foi uma oportunidade que agarrei. Parecia adequado que meu primeiro trabalho fosse lá. Eu queria ser associado aos jogos e de certa maneira aos que competem. Para mim foi uma vitória pessoal entrar no Parque Olímpico, de câmera na mão, trabalhando de novo. Eu até usei shorts, porque queria orgulhosamente que as pessoas vissem minhas pernas protéticas.

Então foi assim que me vi aqui, parado na fila com a orgulhosa e sorridente equipe chinesa, e não podia estar mais feliz. A maioria desses atletas terá passado pelo menos parte de suas vidas sendo marginalizados e estigmatizados por causa de sua deficiência, mas aqui não apenas são aceitos, como celebrados. Sei que é fácil se esconder em vez de ser observado e julgado.

Exige uma certa coragem viver abertamente em um mundo que o considera diferente. Todos esses homens e mulheres estão habituados a ter os olhos do mundo sobre eles. Mas aqui estão, mostrando não o que os torna deficientes, mas celebrando o que os faz únicos.


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