Sociedade

Papai Noel: crer ou não crer?

Para os pais que optam por não iludir seus filhos, a não crença no bom velhinho vira uma questão geralmente mal vista pela sociedade

Foto: JillWellington/Creative Commons/Pixabay
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“Já faz tempo que eu pedi / Mas o meu Papai Noel não vem / Com certeza já morreu/ Ou então felicidade/ É brinquedo que não tem”, já cantava Assis Valente nos anos 1930, na canção “Boas Festas”, também conhecida como “Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel”, fazendo muita gente questionar se o Papai Noel existe para todos. Seja por questões econômicas, políticas ou decisões individuais, muitos pais decidem não passar a lenda adiante.

“Eu sou contra: já venho de uma família que era contra e nunca sequer falamos de Papai Noel aqui em casa. Ele é somente um enfeite de Natal como tantos outros. Não vejo o menor sentido em criar crianças acreditando que merecem presentes dados por uma criatura imaginária. Sempre ganhei presentes de meus pais e dou aos meus filhos, mas sem nenhuma referência a Papai Noel”, disse a médica Melania Amorim, 51.

“Minha mãe, que é historiadora, sempre contava como surgiu a lenda do personagem, baseado parcialmente nos dados hagiográficos de São Nicolau. Assim como, sendo católica, minha mãe sempre montou o presépio mesmo sabendo que a data de Natal foi uma apropriação cristã de uma festa pagã, pois Jesus não nasceu em 25 de dezembro. Tudo é simbólico”, resume Melania.

Adam Phan, 40, é muçulmano não praticante e estudou em colégios privados católicos na França. Ele relatou à reportagem da RFI que aprendeu nas próprias aulas de catecismo que Jesus não nasceu no dia 25 de dezembro e, portanto, sua família não celebra o Natal. Ele conta que o seu filho de cinco anos recebe um presente no Natal, mas ele sabe que quem compra são seus pais.

“Ele é o único na sua classe que não acredita em Papai Noel. No começo, ele não entendia nem aceitava bem esta situação, pois na escola todos os eus colegas e a professora falam em Papai Noel. A gente teve muitas conversas sobre isso, eu lhe expliquei sobre a cultura vigente, e a gente tem que viver com isso”, conta, acrescentando que agora ele aceita melhor, já que, como seus amigos, ele também ganha um presente.

Imaginário

“Eu acho que é importante perpetuar esta tradição de acreditar no Papai Noel, de manter essa magia, este imaginário”, diz a psicanalista Hélène Godefroy.

“É um rito de passagem. Em geral, as crianças desconfiam ou descobrem que o Papai Noel não existe no momento que eles crescem, amadurecem e, muitas vezes, isso é simultâneo ao momento em que perdem seus dentes de leite”, explica. “Eu penso que este é um rito de passagem necessário e estruturante.”

E, quando as crianças descobrem a verdade, elas não se sentem traídas? Para a psicanalista, é quase o contrário.

“Eu penso que as crianças questionam desde pequenas a lenda e, quando eles descobrem que [Papai Noel] não existe, eu acho que isso os alivia e tranquiliza, porque é o que eles já tinham dentro deles, mostra que eles já sabiam a resposta”, diz a psicanalista; que acredita que a Fada do Dente e o Coelhinho da Páscoa também têm uma simbologia importante para as crianças.

Ela sublinha que, independentemente da crença, é importante que as crianças ganhem um presente de Natal. “O presente é muito simbólico, acho importante ter um presente. Aqui na França há diversas instituições para doação de presentes de Natal às crianças desfavorecidas e eu acho isso realmente importante”, ressalta.

“Vencida pela sociedade”

A professora de dança Eloá Chaignet, 31, tem um filho de sete anos e disse que “foi vencida pela sociedade”.

“Eu não queria que meu filho acreditasse em Papai Noel porque tenho uma visão diferente em relação a esses personagens criados por tradições e extremamente usurpados pelo capitalismo. Estar em contato com perspectivas pedagógicas alternativas me faz crer que devemos ajudar a vida da criança, como diz [a médica e pedagoga italiana Maria] Montessori. Dizer que um personagem fantástico é real é, em certo nível, mentir pra criança e essa ilusão não ajuda a vida”, conta.

“Mas a gente não vive numa bolha ou numa tribo onde pessoas que pensam igual estão ao nosso redor. Me parece que em termos de tradições nem há muito questionamento, simplesmente repetição quando se trata da educação dos filhos. Foi possível remar contra a corrente até quando ele tinha três anos, quando houve o primeiro Natal e ele já estava na escola. A partir daí foi impossível desdizer o que o mundo que ele vivia estava apresentando a ele”, relata.

“Daí em diante não alimentei, mas também não destruí a fantasia em nome das minhas crenças. Acredito que o fato de não alimentar, embora toda a família e o entorno o fizesse, fez com que esse ano ele começasse a se questionar e descobrir que não era verdade e que era o papai dele o Papai Noel e que cada pai é um Noel por assim dizer”, conta Eloá.

“No fim, gosto dessa personificação de tudo de bom que tem na lenda do bom velhinho nos pais. Embora também tenha o lado B, que é meio chantagioso, de ‘se comporte e ganhe presentes’, tem a questão da generosidade, bondade e gratidão. Não ficou traumático pra ninguém e conseguimos passar por essa fase”, comemora.

Montessori versus Dolto

A psicóloga Noémi Schwab contrapõe as visões de Montessori à da médica e psicanalista francesa Françoise Dolto.

“Há várias teorias, há aqueles que dizem que devemos contar só a realidade e que mesmo os desenhos animados com animais que falam são um problema. Esta seria mais a visão de Montessori. Eu, como psicóloga, penso que a escolha é dos pais. Se eles querem dizer que o Papai Noel não existe, não devem ser forçados pela sociedade, devem fazer como querem. Mas os que estimulam [a crer] saibam que não há nenhum problema para o desenvolvimento das crianças”, diz.

“Como dizia Françoise Dolto, ela mesma acreditava em Papai Noel, pois ela achava ter um dia por ano em que nós damos presentes sem necessidade de agradecimento, afinal, não temos como agradecer ao Papai Noel, é uma doação generosa”, relembra.

“Como eu disse, enquanto psicóloga, não tenho nenhum julgamento sobre a opção dos pais, mas eu acho importante para as crianças sonharem, acreditarem em lendas; elas se constroem em torno disso, de todas as histórias que contamos, que giram em torno do imaginário e que ajudam na sua construção”, defende.

Para os pais que acreditam que não se deve mentir para os filhos, Noemi fala: “Eu considero um erro falar em mentira. Não é uma questão de mentira, é uma lenda. É preciso fazer a diferença entre lenda e mentira, pois uma mentira é baseada em coisas que não as pessoas não querem confessar, às vezes em manipulação. A lenda do Papai Noel é um sonho, que é comum, é compartilhado e faz parte de uma tradição”, explica.

Questões econômicas

Haveline Monteiro é mãe de duas crianças de 5 e quase 4 anos e, por ter tido uma infância pobre, acha que é importante os filhos terem consciência de que os pais precisam se esforçar para comprar presentes.

“Eu venho de uma família pobre. Logo, esse negócio de Papai Noel e presente nunca foi algo muito importante, porém eu acreditava. Desde novembro eu falo pros meus filhos que Papai Noel não existe e eles não traumatizaram, falei que quem comprou o presente foi o papai, outro a mamãe. Acho bem mais honesto sempre falar a verdade para as crianças, para que elas crescem com a consciência de que os pais não mentem e que a vida é linda, mas não é mágica! E que o sentido do Natal seria mais a confraternização das pessoas em um momento de partilha”, diz Haveline.

Fátima Bosch, 50, também mãe de dois, hoje já adultios, não acreditava em Papai Noel quando era pequena e não gostou disso. Quando teve filhos, fez diferente.

“ Eu não gostava de ser diferente de todo mundo. Eu não gostava da forma que meus pais faziam, eles sempre estimularam nossa criatividade, mas se um de nós comentasse alguma coisa sobre Papai Noel eles interrompiam pra dizer que ‘ele só existe na nossa imaginação’. Era frustrante, porque mesmo não acreditando a gente queria acreditar, ou fazer de conta que acreditava e nem isso podia”, relata.

“Além disso, eu faço aniversário no dia 1ºde janeiro, que é outro motivo pra não ter gostado de não acreditar no Papai Noel, aliás, porque com isso desde pequena meus pais me deram um presente praticamente do mesmo valor do dos meus irmãos dizendo que valia também para o meu aniversário”, diz.

“No caso dos meus pais, tinha também a questão social; eles achavam injusto que os filhos, sendo de classe média, pensassem merecer mais presentes do que quem era pobre. Sem contar que, quando a gente pedia alguma coisa muito cara, eles podiam responder na lata que não tinham dinheiro pra dar, e que era pra gente escolher outra coisa”, conta ela, que fez os filhos acreditarem em Papai Noel, mesmo sem ter referências familiares para isso.

Ainda sem filhos, a psicóloga Manuela Souza diz que os filhos dela não acreditarão em Papai Noel. Ela explica: “A associação do personagem a uma figura capitalista que oferece presentes pode reforçar o sentimento de segregação social nas crianças cujos pais não podem oferecê-las o que elas tanto desejam. O Brasil é o segundo pais com a maior concentração de riqueza do mundo, e a classe média pode até tentar viver numa bolha ignorando a triste realidade que é a da maioria dos brasileiros, mas fato é que a sociedade brasileira é rica em dissimetrias sociais e, no meu ponto de vista, seria antiético não transmitir isso também aos meus filhos”.

“O que é o Natal, no final das contas? Época de se comportar bem pra ganhar presente ou pra aprender a se solidarizar com os outros que não tiveram as mesmas oportunidades que você?”, questiona.

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